Turquia

Ainda sobre a tentativa de golpe na Turquia

22/07/2016
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan

Com o fracasso do golpe e o grande apoio popular que foi muito importante para esse desfecho, Erdogan sai reforçado internamente, sendo de esperar:

Por António Abreu

– o acentuar da divisão da Turquia em duas partes, não sendo seguro, apesar do reforço, nestas circunstâncias, do poder de Erdogan, que a prazo isso provoque maiores convulsões na Turquia. E isto apesar da unanimidade dos partidos políticos, aliados do AKP ou partidos da oposição, em condenar o golpe (1);

– o reforço do poder pessoal de Erdogan e do seu partido, o AKP, o acentuar do culto da sua personalidade e do conservadorismo do regime, bem como do islamismo a todos os níveis;

– uma das maiores purgas da História contemporânea. Milhares de juízes (incluindo do Supremo) foram sumariamente irradiados da magistratura turca por terem “eventualmente” apoiado o golpe militar e contra eles foram passados mandados de captura. O mesmo se passou com militares, polícias, e outros funcionários públicos;

– o reforço do poder por parte de Erdogan levará, seguramente, ao retomar do projeto de presidencialização do regime através de alterações da Constituição;

– com apoio na declaração do “estado de emergência”, o governo terá mão pesada contra os golpistas, com muitas dezenas de altos quadros das forças armadas detidos e, na sequência das ameaças quanto ao futuro desses militares, surge um movimento de opinião para recuperar a pena de morte, abolida há 12 anos, e que Erdogan acha ser de considerar face ao golpe falhado;

– a ruptura com a tradição de forças armadas que ao longo de décadas, desde Ataturk, eram o pilar da secularização do regime. Já há três anos, Erdogan retirou às Forças Armadas, alterando o artigo 35.º do seu Regulamento, o papel de defesa interna da república, atribuindo-lhe apenas a defesa contra as ameaças externas;

– que o conjunto das pessoas presas não pare de aumentar, incluindo militares, polícias, juízes e outros funcionários públicos.

A aparente facilidade da derrota do golpe militar terá ficado a dever-se a uma antecipação precipitada. Erdogan já tinha conhecimento, através dos seus serviços de informação e, provavelmente, dos de outros países, da preparação do golpe. E os golpistas sabiam disso, pelo que, para não serem presos em pijama, decidiram fazer essa antecipação. Entretanto o governo, através do ministro do Trabalho, denunciou perante as câmaras de televisão que os EUA estiveram por detrás do golpe.

O ministro dos Negócios Estrangeiros, referindo-se à base de Incirlik, no Sudeste do país, usada pelos EUA para o ataque ao Daesh na Síria, disse que os militares turcos que aí trabalhavam tinham sido atraídos para o golpe mas que, após a regularização da situação, “vamos continuar a nossa luta contra o Daesh, quer com as nações da coligação, ou no âmbito da OTAN”. Não sendo de esperar que essa ação decorra antes de os EUA responderem ao pedido de extradição de Gülen.

O responsável do movimento Gülen, residente nos EUA, o imã Fethullah Gülen, é considerado por Erdogan como o inspirador do golpe, apesar de ele o ter negado e considerar o golpe como montado pelo próprio Erdogan. Gülen dirige uma vasta rede de escolas e instituições humanitárias na Turquia e em vários países, direcionadas para os turcos. A Turquia prepara acusações sobre atividades a enviar para os EUA que justifiquem, segundo John Kerry, a consideração da sua extradição. Erdogan, desde que rompeu com Gülen, acusou-o de organizar um “estado paralelo” com a intenção de o derrubar, e que era esse estado que estava a funcionar nas vésperas do golpe.

Já estava em curso, mas é de prever o acentuar de uma política externa turca virada para outros quadrantes, podendo posicionar-se como polo estratégico em relação a um razoável número de países, que ultrapasse as estritas motivações da OTAN, que, aliás, não veio em apoio do governo legitimado nas urnas, que enfrentou um golpe militar. A vocação eurasiática da Turquia poderia acentuar-se.

Erdogan pretende tirar o país da crise resultante das grandes quebras de exportações de têxteis, desde 2008, transformando o país numa encruzilhada (hub) do fornecimento de gás e petróleo à Europa (2).

Erdogan já estava a realizar, antes do golpe, negociações com a Síria, prometendo abandonar o projeto de derrubar o regime de Assad, motivado pela contenção dos curdos, do Irã e da Rússia. Não por acaso, o governo sírio expressou o seu apoio à “valente defesa da democracia” que foi a derrota do golpe na Turquia. Pode ser que as relações entre os dois países melhorem, mas a Turquia, que já sofreu graves atentados do Daesh, deverá rever a sua atitude de cooperação com este e outros grupos terroristas na região.

Idêntica rejeição do golpe teve o Irã, o primeiro país a fazê-lo, ao contrário da Arábia Saudita e do Qatar, que foram vendo para que lado caíam as coisas. Com esta atitude, o Irã propõe-se ser o principal aliado de Ancara, no período pós-golpe.

O governo russo tem interesses que o levarão a cooperar mais com a Turquia. Para além da participação nos projetos energéticos da Turquia, os russos têm interesse em que a sua frota do Mar Negro possa voltar a ter acesso ao Mediterrâneo, e a soberania da Turquia sobre o Bósforo é decisiva para isso.

As relações entre o governo turco e o russo têm evoluído favoravelmente, depois do abate pela Turquia de um caça russo e das desculpas apresentadas por Erdogan. Principalmente na área da energia, que veio compensar as quebras no comércio têxtil da Turquia. O gasoduto SouthStream, no Mar Negro, foi desviado da Bulgária para a Turquia como forma de tornear as regulamentações da UE contra o monopólio da Gazprom. E os russos querem estender a cooperação energética à área da energia nuclear.

A Rússia tem interesse em ver reduzidas as sanções que tem sofrido por causa da Ucrânia. E até na cimeira da OTAN, em Varsóvia, Hollande afirmou, em tom vigoroso, que “à OTAN não cabe ter qualquer papel em como devem ser as relações entre a Europa e a Rússia. Para a França, a Rússia não é adversária, não é ameaça”. Essa afirmação, para além de objetivos domésticos, terá sido feita com a consciência de que um novo eixo transatlântico se tem vindo a definir entre os EUA e a Alemanha, já que os EUA tudo farão para conjurar um eixo entre a Alemanha e a Rússia.

O Brexit, que continuará a ter consequências, contribuiu para que o governo turco se desinteresse da UE, por não ganhar nada com isso. Por outro lado, as relações ambivalentes da Turquia com a UE e os EUA abrem a perspectiva de a Turquia, em vez de continuar a ser um mero peão da OTAN, fazer um acerto na sua política externa com vista a contribuir, com um peso próprio, para um mundo multipolar.
(1) Entre eles, o Partido Comunista da Turquia, que em cima dos acontecimentos sublinhou: “A tensão e as rivalidades entre diferentes grupos no seio do Estado e das Forças Armadas, que sabíamos existirem, numa dada altura tomaram a forma de um conflito armado. Se a tensão entre essas forças é real, não é verdade que qualquer um desses grupos represente os interesses do povo. Procurar a solução contra o governo do AKP através de um golpe militar é um erro, como errado será dar qualquer apoio ao AKP com a desculpa de tomar posição contra o golpe militar”.

(2) Nesse sentido, há acordos assinados pela Turquia com a Rússia e o Irã. Tem ainda a possibilidade de retomar com o Azerbeijão o projeto B-T-C (Baku-Tbilisi-Ceilão) para o escoamento do gás deste país. Também poderá participar com a Arábia Saudita e o Qatar no transporte do gás de Pars, no Qatar. Todos estes projetos passam pela província da Anatólia Oriental, de maioria curda e forte influência do PKK. Sendo por isso de prever o acentuar de acordos com o PKK, que, por outro lado, possam contribuir para atenuar o projeto de formação de um Grande Curdistão, projeto alimentado pela França e outras potências europeias, e pelos EUA, para enfraquecerem vários países e consolidarem a sua liderança na região.

Fonte: AbrilAbril

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