Movimento Comunista

Bento Gonçalves perante o Tribunal fascista

15/03/2016

Durante as décadas de regime fascista em Portugal, o Partido Comunista Português (PCP) foi a única força a desenvolver atividade contínua mesmo perseguido por feroz repressão. Seu principal dirigente na década de 1930, o operário Bento Gonçalves, foi preso em março de 1936, submetido a julgamento pelo regime e enviado a um campo de concentração, onde morreu. Portou-se de forma heroica diante dos verdugos. A revista O Militante, do PCP, edição Março/Abril, publica este artigo de Domingos Abrantes sobre o líder revolucionário, que o Resistência reproduz para a divulgação entre seus leitores.

Bento Gonçalves perante o Tribunal fascista

No ano em que se assinala o 80º aniversário do julgamento de Bento Gonçalves, Secretário-geral do Partido à época, e da abertura do Campo de Concentração do Tarrafal, para onde Bento Gonçalves foi deportado depois do julgamento e onde viria a morrer, “O Militante” assinala esses acontecimentos prestando homenagem a essa grande figura do Partido e do movimento operário, salientando aspectos da sua contribuição para a luta revolucionária e divulgando partes da sua contestação às acusações formuladas na nota de culpa do Tribunal Militar Especial (T.M.E.), elaborada quando se encontrava preso no Forte de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.

Por Domingos Abrantes

A contestação de Bento Gonçalves ao T.M.E., elaborada embora em condições precárias e dispondo de um curto espaço de três dias para o fazer, permanece como um documento histórico da maior importância para um melhor conhecimento de Bento Gonçalves como destacado dirigente operário do PCP, revolucionário firme e convicto e homem íntegro e de cultura, bem como para o conhecimento da sua contribuição para o esclarecimento da natureza do fascismo, para a elaboração de uma política de combate à ditadura.

Bento Gonçalves inaugura com a sua contestação a prática dos comunistas se apresentarem perante os tribunais fascistas não como réus, mas como acusadores do regime fascista, das suas políticas e dos seus crimes, ao mesmo tempo que assume, perante o T.M.E., o orgulho da qualidade de militante e dirigente do Partido Comunista, defendendo a justeza da atividade do Partido e manifestando a enorme confiança nos destinos da luta revolucionária dos trabalhadores e do Partido.

Um documento que reflete já a contribuição que ainda deu para aplicar as orientações do VII Congresso da IC à análise da natureza do fascismo, à política de alianças, à dialética da luta pela satisfação de reivindicações imediatas e a luta pelos objetivos finais, tendo em conta a realidade nacional. Um documento que é igualmente uma afirmação do PCP como continuador das tradições de luta progressista das massas populares e do que deve ser um militante comunista.

Bento Gonçalves tinha sido preso com dois outros membros do Secretariado, numa rua de Lisboa, no dia 11 de novembro de 1935, pouco tempo depois da sua chegada a Portugal, vindo de Moscou onde participou no VII Congresso da Internacional Comunista. A PVDE (a PIDE de então) não ignorava as suas qualidades políticas e organizativas, nem as suas responsabilidades no reerguer da organização e da luta do movimento operário e do Partido depois do golpe fascista de 1926.

Enviado para uma esquadra da polícia para interrogatórios, como era prática corrente na altura, foi mantido durante 44 dias na mais rigorosa incomunicabilidade e em condições que se podem avaliar, sabendo-se por documentação policial que ao fim de sete dias de prisão a PVDE reclamara a presença de um médico daquela polícia na esquadra porquanto Bento Gonçalves “necessitava de ser visto com urgência”.

A 6 de Janeiro de 1936, pouco tempo depois de ter saído da incomunicabilidade, sem julgamento e sem que tivesse sido formalizada qualquer acusação a não ser as da polícia, Bento Gonçalves é deportado para a famigerada cadeia instalada na Fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo.

É já em Angra, a 16 de Fevereiro, que Bento Gonçalves toma conhecimento da nota de culpa, na qual são formalizadas as acusações movidas contra si, que passavam pela acusação não só de ser membro do PCP, mas também a de ser o principal responsável por toda a atividade do Partido: incitamento à indisciplina social, organização da semana de agitação (25/2/35 a 2 de Março), nomeadamente no Barreiro, onde teve grande impacto ficando conhecida pela “Jornada das Bandeiras Vermelhas” – acontecimento que a Câmara Municipal do Barreiro está nesta altura a comemorar –, difusão da imprensa do Partido, ter tomado parte ativa na preparação da Greve Geral revolucionária do 18 de Janeiro. Uma atividade partidária que visava, segundo a acusação, “à destruição dos princípios fundamentais da sociedade por serem incompatíveis com os princípios basilares do comunismo”.

Bento Gonçalves, pela natureza das acusações que lhe eram movidas, quer pela polícia no decurso dos interrogatórios, quer pelo Tribunal Militar, concluiu que o que estava em causa era “em certa medida o processo do Partido Comunista Português”, pelo que acusa o T.M.E. de não fazer mais do que trazer “a público as proclamações do Governo da Ditadura a propósito do comunismo: ‘revolução extremista que espreita’, ‘revolução vermelha que está para eclodir’”, manobras que classifica de “atoardas fascistas”.

Na verdade, a natureza das acusações era determinada pelo papel de vanguarda que o PCP representava na resistência ao fascismo, papel naturalmente inseparável do empenho e das qualidades de Bento Gonçalves.

O PCP tinha sido declarado o único inimigo do regime. Atuando na mais rigorosa clandestinidade, enfrentando um poderoso aparelho repressivo, sofrendo golpes atrás de golpes, o Partido ia erguendo o aparelho clandestino, criando um aparelho de imprensa, com destaque para a publicação do “Avante!”, alargava as suas fileiras em número de militantes, estendia a organização a várias regiões do país e a diferentes camadas sociais e encabeçava a luta dos trabalhadores por reivindicações imediatas e contra o fascismo. A crescente resistência ao fascismo, a intensa repressão, a virulência da propaganda anticomunista, eram a prova de que as proclamações fascistas acerca da liquidação do Partido se revelavam manifestamente infundadas, o que teria levado Bento Gonçalves a afirmar: “Há cerca de um ano (começo de 1934, com a repressão do 18 de Janeiro), a ditadura anunciou em tom de gala que havia derrubado para sempre o Partido Comunista e a luta de classes. Qual é a situação – perguntava então – nos começos de 1935?”.

Das lutas travadas, do crescimento da influência do Partido tira a conclusão: “Quando os Salazares clamam: o comunismo é o único perigo! – Isto quer dizer que não só a ditadura, mas os políticos da burguesia, em geral, já dificilmente podem opor um dique à vaga revolucionária das massas”.

Na sua intervenção proferida no VII Congresso da IC (verão de 1935) analisa o processo de balanço das estruturas econômicas sob o fascismo ao serviço dos grandes grupos econômicos e dos agrários e como a ofensiva do capital, tendo como consequência a intensificação da exploração dos trabalhadores, dos camponeses, das massas populares em geral, a par da intensificação da repressão, tinha conduzido “a uma nova amplitude da luta de classes e ao alargamento da indignação antifascista”.

O balanço das lutas de várias camadas, com destaque para os trabalhadores, apresentado ao VII Congresso, confirmava o reforço da resistência ao fascismo, tendo Bento Gonçalves salientado que “a maioria de todos estes movimentos e manifestações se desencadeiam com base na direção do nosso Partido e da Comissão Inter-sindical, já sob a nossa influência.”

Salienta, ainda, que o PCP era já na altura a única “força organizada que luta à frente das massas contra a exploração capitalista e o fascismo.”

Compreende-se, pois, a sanha desencadeada contra Bento Gonçalves, contida nas acusações, as quais vai desmontar assumindo-se como acusador.

As próprias notas biográficas sobre o seu percurso de vida estão marcadas pela postura do acusador, não se limitando a uma mera resposta a exigências processuais de identificação, defendendo o carácter indissociável da sua condição de profissional altamente dotado e preparado, das suas atividades civis e políticas: o brio profissional como princípio orientador de vida, a rejeição de promoções que o separassem dos seus companheiros de trabalho, os conhecimentos profissionais postos ao serviço dos outros.

Qualidades que o Tribunal reconhece – classifica-o mesmo de excelente operário – só que, para o tribunal, “a sua ação como secretário-geral do Partido Comunista foi – por força das suas funções e ideologia – socialmente nefasta”.

Repudiando as tentativas de o amarrarem e ao Partido a ações terroristas e ao carácter insurrecional, que a polícia pretendia ter assumido o 18 de janeiro, Bento Gonçalves assume a responsabilidade, como dirigente, da atividade do Partido, mas uma atividade da qual sempre descartou “a prática de atos isolados ou de terror”, como posição do C. Central e sua posição pessoal, “factos que se encontram sublinhados na imprensa do Partido (‘Avante!’)”.

Rejeitando a acusação de ter (e o Partido) responsabilidade na preparação da Greve Geral de 18 de janeiro com caráter revolucionário, clarifica qual foi a sua posição e a do Partido naquela jornada: “O movimento de 18 de janeiro não foi preparado pelo C. C. do Partido Comunista Português debaixo da palavra de ordem de greve geral revolucionária, nem revolução contra a ditadura. O C.C. do Partido Comunista Português e eu pessoalmente, não havia perdido a cabeça, mas preparámos o “movimento do 18 de janeiro debaixo da palavra de ordem impedir a fascização dos sindicatos da classe operária portuguesa”, a prová-lo está o manifesto editado pelo Partido de “preparação daquele movimento e a sua linha política geral”, bem como a crítica feita “à palavra de ordem greve geral revolucionária”.

Acusado de ser membro do Partido Comunista e de desenvolver bastante atividade, assume que assim é, mas diz mais: “Não faço apenas parte do Partido Comunista: assumo a responsabilidade de seu dirigente político”, acrescentando, contrariamente ao que era dito na nota de culpa, que a sua atividade política não procede de 1935, mas de 1929, e quanto à acusação de “desenvolver bastante atividade”, declara nada ter que objetar, mas precisando ser “incapaz de conceber que um membro responsável dum Partido que luta contra tudo que é velho e iníquo, possa cumprir a sua missão sem desenvolver bastante atividade”.

Bento Gonçalves assume claramente que o PCP luta pela emancipação dos trabalhadores pela via revolucionária, considerando que a “atividade revolucionária não é matéria de crime, foi pela ação revolucionária (tem em mente a revolução francesa) que as democracias alvoreceram. A diferença é que a revolução proletária tomou corpo, quando à classe operária se tornou patente que a democracia burguesa era incapaz de instaurar a democracia autêntica, a democracia de abolição da exploração do homem pelo homem”. O fascismo falava em revolução, a “Revolução Nacional” para enganar as massas do povo, “ao passo que o P. C. se propõe realizar efetivamente a revolução de libertação nacional e social do povo português.”

O carácter subversivo da atividade do Partido e de Bento Gonçalves expressava-se, como era recorrente para o fascismo, na acusação do “incitamento à indisciplina social”. Bento Gonçalves não esconde que o Partido luta contra a forma de organização social existente, mas a sua atividade, a atividade do Partido Comunista Português “não cabe no colete de forças de incitamento à indisciplina social. O Partido Comunista Português opõe, partindo da realidade da própria vida, uma forma determinada e precisa de organização econômica e social, à ordem econômica e social existente”.

Reivindicando ser o PCP o “herdeiro dos melhores valores progressistas do nosso país”, diz: “é muito fácil saber-se o que querem e para onde vão os comunistas. O Partido Comunista combate o atual estado de iniquidade social debaixo de um programa preciso. Nós lutamos pela restituição ao povo português de todas as liberdades democráticas, conquistadas pelos nossos antepassados… e que a ditadura nos roubou.”

Bento Gonçalves avança duas ideias que terão no futuro a maior importância na definição das orientações e na atividade do PCP: a questão da unidade antifascista e das lutas imediatas – a que chamou etapa intermédia – como parte integrante da luta pelos objetivos finais.

“Lutamos – diz – pela satisfação imediata das reivindicações urgentes do proletariado, pela defesa das condições econômicas e sociais das camadas médias, pela defesa da cultura e pelos interesses da pequena e média atividade em geral, e propomo-nos realizar este programa por meio da Frente Popular de todos os agrupamentos que estão contra a Ditadura fascista vigente.”

Mas para o Partido, “Esta é uma etapa intermédia para a luta pela emancipação dos trabalhadores, para a instauração da Democracia Autêntica, que constitui o objetivo ulterior do nosso Partido.”

Aquilo que o fascismo classifica de “incitamento social” é a atividade do PCP em defesa dos interesses da classe operária, dos camponeses, das mulheres e dos jovens. É a luta contra o desemprego. Contra a censura, contra os monopólios. “Nós conhecemos – diz Bento Gonçalves – o valor prático desta acusação, lançada contra o Partido Comunista Português e o movimento antifascista”. O regime utiliza a acusação “de incitamento à indisciplina social” para pôr “em prática os métodos de repressão mais violenta da luta de classes e, em particular, do Partido Comunista”, realidade que Bento Gonçalves denuncia recordando os nomes do longo “cortejo de vítimas da Ditadura fascista”, o nome dos que foram assassinados, dos que foram sujeitos a torturas brutais, dos que estavam sujeitos a regimes prisionais desumanas, onde imperava a arbitrariedade dos carcereiros.

Bento Gonçalves defendeu até ao fim a justeza da causa que abraçou e da atividade do Partido. “Creio – dizia – ter provado que as acusações que me são feitas pelo T.M.E. não encerram matéria de crime”. Se se cometiam ilegalidades, crimes, incitamento à indisciplina social, isso devia ser assacado ao regime fascista.

Mas o que estava em causa não era a sua pessoa, mas o PCP. “Se a acusação que ora me é feita é insignificante em comparação com as acusações que dia a dia são lançadas contra o meu Partido, isto quer dizer que à ditadura já falta ambiente para realizar o estrangulamento do Partido Comunista Português. Porém, não tenho ilusões sobre o critério policial da ditadura: faz-se-me uma acusação insignificante para distrair o proletariado da luta pela libertação dos militantes revolucionários e antifascistas que se encontram a ferros da Ditadura”. “O proletariado reunirá as suas forças para o contra-ataque à ofensiva do capital”. “Os 10 anos de opressão fascista em Portugal já forneceram uma experiência bastante salutar às forças antifascistas do país, para resolveram as pequenas querelas que as dividem, na luta contra o inimigo comum.”

Bento Gonçalves sabe o que o espera no fim do julgamento, mas a confiança nos resultados da luta revolucionária é inabalável. É essa confiança que expressa no final da sua contestação: “O Tribunal vai ditar-me a sentença. Que faça o Tribunal o que entender. Quanto a mim, mantenho-me nesta convicção: a Terra Gira!”.

No dia 3 de agosto de 1936, o T.M.E. condena Bento Gonçalves a seis anos de desterro em local à escolha do Governo, doze mil escudos de multa e perda de direitos políticos por dez anos. Uma sentença que já estava escrita desde o primeiro dia de prisão.

Bento Gonçalves ainda trava a batalha de recurso da sentença, não que tivesse ilusões quanto ao seu desfecho mas seria uma forma de continuar a desmascarar o regime fascista e o seu aparelho judicial e a defender a justeza da atividade do PCP.

Cerca de dois meses depois da confirmação da sentença (15 de agosto de 1936), Bento Gonçalves integra a primeira leva de presos que vão inaugurar o Campo de Concentração do Tarrafal e do qual já não sairia com vida.

No dia 11 de setembro de 1942, ao fim de seis anos sujeito a um regime brutal – trabalhos forçados, castigos sucessivos, má alimentação, ausência de assistência médica – e quando já tinha terminado a pena a que fora condenado, morria Bento Gonçalves, Secretário-Geral do PCP, “um dos mais lúcidos dirigentes do movimento operário” à época, “orgulho e honra da classe operária”, como várias vezes tem sido referido.

O assassinato de Bento Gonçalves não foi um acidente. A avaliação que a polícia fazia de Bento Gonçalves não deixa margem para dúvidas de que foi enviado para o Tarrafal para morrer.

Burocraticamente, o Diretor do Campo de Concentração, no dia seguinte à morte, informava o Diretor da PVDE: “Tenho a honra de informar V. Ex.ª que o recluso António Bento Gonçalves faleceu no dia 11 do corrente, pelas 19 horas e 35 minutos, vitimado pela febre biliosa hemoglobilúrica”.

Uma nota biográfica, elaborada pela polícia após a sua morte, como “complemento” à informação do falecimento, apresenta-o como “Um dos principais dirigentes do PCP que orientou o desenvolvimento da organização clandestina”, “um dos agitadores mais perigosos do seu tempo não só por se tratar de um operário que se cultivou bastante na ideologia marxista como também pela orientação que imprimiu à direção do Partido Comunista Português, mesmo durante o tempo que permaneceu fora do país”.

O fascismo sentia-se aliviado com a morte de tão destacado revolucionário.

Bento Gonçalves fez parte do grupo de 32 antifascistas assassinados no Campo de Concentração do Tarrafal. A sua morte representou uma enorme perda para o Partido, para o movimento operário português.

Ficou-nos o exemplo de um comunista convicto, firme, de entrega plena.

Ficou-nos igualmente uma contribuição inestimável para o reagrupamento de forças depois da instauração do fascismo, para a compreensão de que para o combate à ditadura fascista era indispensável criar uma organização clandestina com um aparelho de propaganda próprio, para a caracterização do fascismo e a elaboração da estratégia da luta antifascista, para a afirmação do marxismo no movimento operário, para a implementação de uma linha de massas e de combate a métodos terroristas e putchistas, para a formação teórica e ideológica dos quadros e sua firmeza revolucionária, considerada condição segura para o reforço das fileiras do Partido, contribuições que ao longo dos anos se tornaram patrimônio identitário do PCP.

Fonte: Revista O Militante

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