Opinião

Considerações sobre a iniciativa chinesa um cinturão e uma rota

16/02/2017

O termo “Um cinturão e uma rota” tem aparecido com cada vez mais frequência nos textos envolvendo a internacionalização do capital chinês, seja na mídia ou na academia. Mas o que exatamente significa “Um cinturão e uma rota”? E qual seriam seus objetivos?

Gaio Doria *

Um cinturão e uma rota (一带一路) é uma abreviação para Cinturão Econômico da Rota da Seda e Rota da Seda Marítima do Século XXI (丝绸之路经济带和21世纪海上 丝绸之路). Este conceito é uma proposição teórica para o desenvolvimento de uma estratégia de desenvolvimento que impulsione a conectividade e cooperação da China com a Eurásia, composta por duas frentes, uma terrestre – Cinturão Econômico da Rota Seda – e outra marítima – Rota da Seda Marítima do Século XXI.

O objetivo primordial é alavancar a participação chinesa no comércio e assuntos internacionais, impulsionando novas parcerias e oportunidades de negócios. Neste sentido, podemos argumentar que o “Um cinturão e uma rota” é a principal estratégia chinesa para expandir sua influência político-cultural e poderio econômico.

O projeto faz alusão a famosa Rota da Seda. A Rota da Seda era uma rota comercial estabelecida durante a dinastia Han (206 a.C. até 220 d.C), cujo ponto de partida era a atual cidade de Xian (西安) – na época capital imperial – e se estendia até o mediterrâneo. Apesar de sua história milenar, o termo Rota da Seda foi somente cunhado em 1877 pelo geógrafo alemão Ferdinand Von Richthofen. Na verdade, não se tratava de apenas uma rota, mas de várias rotas comercias que interligavam diversas regiões tanto economicamente quanto culturalmente, da China até o Império Romano. Podemos afirmar, portanto, que a Rota da Seda era a maior rede comercial do mundo antigo. Esta, no entanto, enfraqueceu-se no mesmo passo da degeneração do império mongol e a sua consequente fragmentação política, onde por volta do século XV, deixou de existir devido a ascensão do Império Otomano, cujos governantes eram extremamente antiocidentais.

De qualquer forma entrou para a História como um capítulo importante das conexões entre o ocidente e o oriente. No imaginário chinês, a Rota da Seda ocupa um local proeminente, pois representa uma época de apogeu civilizacional, onde o país asiático ocupava um lugar central no sistema-mundo tanto no aspecto econômico, quanto cultural.

A República Popular da China busca recuperar este capital simbólico para estabelecer uma nova rota comercial – dotada de uma narrativa histórico-cultural comum – que englobe todos os países abarcados na empreitada, de modo a expandir seus interesses político-econômicos. Isto porque a China devido a sua singular formação histórico-cultural tem uma certa dificuldade em criar interlocuções com os demais países e regiões do mundo.

A operacionalização do “um cinturão e uma rota” também encontra fortes obstáculos. No caso do “Cinturão Econômico da Rota Seda” cabe lembrar que a Ásia Central, por onde passará a principal via da rota, atualmente é formada por um conjunto de países cujo quadro geral é marcado por uma alta fragmentação política, com intensos conflitos regionais. Outro imbróglio é a participação da Rússia, cuja presença no projeto gera profundos conflitos de interesse com certos países da Europa participantes na iniciativa.

No caso da “Rota da Seda Marítima do Século XXI”, a questão do Mar do Sul da China coloca enormes obstáculos para a realização do projeto. Esta região funciona como um gargalo dos oceanos pacíficos e índicos , constituindo-se como uma posição geográfica estratégica devido ao seu papel de conectar importantes rotas marítimas.

Estimativas apontam que mais da metade da frota mercante do mundo passa por ali, representando um terço de todo o tráfico marítimo mundial. Não obstante, o Mar do Sul ainda é lugar de uma reserva considerável de combustíveis fosseis que, segundo dados chineses, pode chegar a ser a segunda maior do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita. Além da localização e reservas energéticas, o Mar do Sul da China também possuiu centenas de pequenas ilhas – a maioria submersa- e recifes. Estes elementos são os alicerces da disputa entre os atores regionais pelo controle do Mar do Sul da China e explica o interesse estadunidense em se fazer presente na questão.

Desta forma, a iniciativa do “Um cinturão e uma rota” pode ser compreendida como um dos projetos mais ambiciosos dos últimos tempos, tanto do ponto de vista econômico, quanto político. Contudo, dada a escala colossal de tempo e investimento, este projeto certamente enfrentará enormes desafios para sua concretização.

Cabe recordar que já houve um caso de um projeto semelhante proposto pelo Japão que nunca saiu do papel. Na década de 1990, o país do sol nascente buscou como solução para escapar da depressão econômica financiar projetos de infraestrutura pela Ásia com capital japonês. No auge da crise da crise asiática de 1997, o governo japonês chegou a propor a criação de um Fundo Monetário Asiático para emprestar fundos aos governos em dívida com juros mais baixos que os oferecidos pelo Banco Mundial e FMI. Na época, a proposta chegou a gerar tensões diplomáticas entre o Japão e os Estados Unidos, este último principal “gestor” de todas as principais organizações financeiras internacionais existentes atualmente. Os Estados Unidos e seus aliados mais próximos sempre deixaram claro que não tolerarão ameaças ao status quo da atua ordem internacional.

A China conseguiu estabelecer com sucesso instituições financeiras internacionais para fazer avançar seus interesses, nomeadamente o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS. O AIIB foi fundado, em grande parte, para ser a espinha dorsal da iniciativa “um cinturão e uma rota”.

A ascensão chinesa nas últimas décadas teve um impacto enorme na estrutura geopolítica vigente. No esteio do crescimento do poderio militar e econômico chinês, também cresceu o espectro de atuação política deste país. Cada vez mais assistimos a China com uma comunicação internacional mais eficiente, colocando adiante seus próprios conceitos e fazendo avançar suas perspectivas teóricas sobre a realidade atual para além de suas fronteiras. A iniciativa “um cinturão e uma rota” é uma prova disso.

Segundo o governo chinês, esta iniciativa está alinhada com as diretrizes e propósitos da carta da ONU e assume os cinco princípios para coexistência pacífica como guia fundamental. Ainda de acordo com o discurso oficial, o quadro teórico do cinturão e uma rota estaria sumarizado nas ideias de cooperação pacífica, desenvolvimento, beneficio mútuo. O clássico conceito de ganho mútuo, recorrente no discurso chinês, permeia todo o projeto.

Em suma, podemos dizer que os objetivos estratégicos por detrás da ascensão da China estão claramente expressos nesta iniciativa: (1) diminuir a dependência chinesa das rotas comerciais pelo sudeste asiático para importar as commodities da África e Oriente Médio; (2) interligar a China com a Europa através da Ásia Central e Rússia; (3) conectar a China com o pacífico sul através do mar do sul da China; (4) juntar a China com a Europa através de uma rota marítima através do mar do sul da china e do oceano índico.

A meta chinesa é exercer um grau de controle sobre uma parte considerável do comércio mundial. A história nos mostrará se essa empreitada colossal da China irá se concretizar e se realmente será implementada com ganho mútuo para todas as partes envolvidas. Seja como for, não podemos deixar de problematizar o debate em volta desta iniciativa, em especial sob um ponto de vista marxista. Faz-se necessário entender o papel da China enquanto um país socialista exportador de capital e seu impacto na geopolítica global, na luta pelo socialismo e na reconstrução do movimento comunista internacional.

Historiador pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em economia pela Universidade do Povo da China, atualmente é doutorando na mesma universidade

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