Solidariedade

Documentário “O Deserto do Deserto” mostra luta dos saharauis pela independência do Saara Ocidental

13/04/2016

Um zumbido incessante e a necessidade de usar aparelho auditivo são as marcas mais palpáveis para o cineasta e ator Samir Abujamra de uma experiência que quase terminou em tragédia. No meio das filmagens do documentário O Deserto do Deserto, que faz a sua estreia durante o 21º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários (veja abaixo os horários das sessões), o carro em que estava Samir passou por cima de uma mina terrestre. Apesar do susto, todos os passageiros do veículo escaparam com vida.

Por Adriano Garrett, para o Opera Mundi

O filme, dirigido pelo brasileiro junto com o franco-chileno Tito Gonzalez Garcia, retrata a complexa situação do Saara Ocidental, território localizado no noroeste africano que segue sendo a última colônia no continente.

Em 1975, depois de quase um século de colonização, a Espanha fez um acordo para se retirar do local. Porém, em lugar de ceder o controle à população saharaui, acabou por dividir o território entre o Marrocos e a Mauritânia, com o intuito de seguir explorando as grandes reservas de fosfato e o potencial pesqueiro da região.

A Mauritânia se retirou do território anos depois, mas a disputa entre a resistência saharaui – ocorrida principalmente através da Frente Polisário, espécie de exército de libertação nacional – e o Marrocos continuou. Em 1991, um cessar-fogo ocorreu após a promessa de que um referendo seria feito para que a população local decidisse sobre seu futuro, mas isso nunca chegou a ocorrer.

Atualmente, muitos saharauis vivem em campos de refugiados na Argélia. A maior parte do país é ocupada militarmente pelos marroquinos, que exploram as riquezas naturais e reprimem qualquer discurso pró-independência, enquanto uma porção menor do território está sob controle da Frente Polisário.

Na fronteira entre esses pedaços de terra, o governo do Marrocos construiu um muro de cerca 2.700 quilômetros, que é hoje a maior barreira militar em atividade no mundo. No entorno, também foram colocadas milhões de minas terrestres, entre elas a que atingiu o carro dos documentaristas.

Em entrevista a Opera Mundi, Samir Abujamra falou sobre a realização de O Deserto do Deserto e discutiu as diversas particularidades da região africana. Leia trechos da entrevista a seguir:

Opera Mundi: O filme mostra que a ocupação do Marrocos no Saara Ocidental está relacionada à exploração de riquezas naturais, principalmente o fosfato e a atividade pesqueira. Esses fatores ainda são relevantes 40 anos depois da ocupação marroquina?

Samir Abujamra: Sem dúvida. Em 2014 eu estive em uma audiência realizada pelas comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional e de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados que tratou do assunto. Muitos partidos assinaram um pedido para o governo brasileiro reconhecer a República Árabe Saharaui Democrática (governo no exílio, liderado pela Frente Polisário, que reivindica a soberania sobre o Saara Ocidental).

O deputado Alfredo Sirkis (PSB-RJ), que sugeriu a audiência, citou que é um absurdo que um país que teve uma atuação tão importante como no caso do Timor Leste, que teve um conflito parecido, ainda não reconheça a RASD. É uma vergonha, mas que pode ser explicada pelos interesses comerciais que o Brasil possui com o Marrocos.

OM: Como tem sido o papel da ONU e da comunidade internacional atualmente sobre o caso do Saara Ocidental?

SA: O Ban Ki-moon (secretário-geral da ONU) esteve recentemente nos campos de refugiados na Argélia e pela primeira vez disse a palavra “ocupação” para se referir ao caso do Saara Ocidental. A diplomacia do Marrocos se enfureceu, é claro, porque para eles é muito confortável que essa história fique blindada.

A ONU considera o Saara Ocidental um território autônomo sem status jurídico, e por isso diz que não pode garantir os direitos humanos na região. Mostramos no filme imagens feitas por grupos de resistência com mulheres apanhando na rua. Há casos de pessoas que ficaram vendadas por quatro anos na cadeia sem julgamento, uma situação terrível.

Sobre os outros países, a Espanha, e principalmente a França, sempre defenderam os interesses do Marrocos. Uma derrota importante sofrida recentemente foi a decisão da União Europeia de anular um acordo comercial feito com os marroquinos justamente por causa da exportação de produtos vindos do Saara Ocidental.

OM: Para manter a repressão e a ocupação do Saara Ocidental, o Marrocos tem que gastar bastante, principalmente com soldados. Vale a pena para eles seguir financiando esse conflito?

SA: O que eu sei é que o muro custa US$ 2 milhões por dia para o governo marroquino. Acredito que siga sendo vantajoso para eles ter um território gigante sob seu domínio.

O que mais me impressiona é que ninguém sabe desse muro. Lembro que há pouco tempo comemoraram o aniversário da queda do Muro de Berlim e vi várias matérias sobre os maiores muros do mundo, e ninguém falava sobre o Saara Ocidental.

OM: Esse desconhecimento geral foi um dos incentivos para a realização do filme?

SA: Entrei nesse filme porque achei a historia incrível. Nem eu nem o Tito (codiretor) somos ativistas, meu trabalho é artístico. Obviamente que nosso filme é a favor dos saharaui, mas o principal foi dar voz para eles. Uma coisa de que me orgulho é que não ouvimos um entrevistado engravatado da ONU ou um especialista em geopolítica. Falamos com quem vive o conflito no dia a dia.

OM: As pessoas que foram entrevistadas tinham o costume de falar sobre a luta saharaui?

SA: Acredito que não. Já foram feitos outros documentários sobre o assunto, mas não muitos. Entre todos, desde o cara mais enfiado no deserto até quem está no campo de refugiados, uma coisa em comum é a noção de que só contando a história deles é que haverá uma chance de mudança.

OM: Uma das discussões levantadas pelo seu filme é a dificuldade de manter a identidade cultural saharaui entre os refugiados…

SA: Acho que o que pode sintetizar essa questão é a imagem de nômades tendo a sina de viverem confinados; essa é a grande tragédia. São pessoas que vivem em uma das regiões mais inóspitas possíveis e que não precisam de quase nada para ser feliz. Aquela cena do filme em que dois garotos estão construindo uma casa tem um simbolismo muito grande: isso não existe na vida nômade, o normal é cada um ter sua tenda.

Se você é saharaui nos dias de hoje, há quatro possibilidades: estar no exílio na Espanha ou em outro país europeu; estar em um campo de refugiados, de onde você não vai sair; estar no território ocupado pelo Marrocos, de onde você também não vai sair e ainda vai sofrer uma série de violações; e, por último, estar na parte do deserto ocupada pela Frente Polisário e viver como nômade, tendo o risco de se deparar com milhões de minas terrestres que matam regularmente adultos, crianças e animais.

É uma situação muito difícil, mas ainda assim tem quem escolha ficar no deserto, como uma senhora que aparece no filme dizendo que prefere morrer em território livre.

OM: Muitas vezes a língua é tida como instrumento de dominação cultural. Pela sua experiência, qual é a relação que os saharaui têm hoje em dia com o idioma e com a Espanha?

SA: No filme mostramos que até hoje os saharaui têm aula de espanhol. A Espanha foi quem começou tudo isso, mas curiosamente eles não têm nada contra os espanhóis. Quando estava lá, encontrei uma ginecologista espanhola que trabalhava para uma ONG. Ela me disse que achava que seria maltratada, mas que a recepção que teve foi muito boa.

Mostramos isso no filme na cena em que aparecem os meninos jogando Playstation e a sala está decorada com pôsteres do Real Madrid e do Barcelona. O problema hoje não é com a Espanha, até porque cidadãos espanhóis mais esclarecidos, com uma visão um pouco mais humanista, têm muita vergonha do que o país deles fez com o Saara Ocidental.

O problema da população é realmente com o Marrocos, o que eu acho uma coisa muito altiva, nobre, porque seria muito fácil odiar a Espanha.

Sessões de O Deserto do Deserto no 21º É Tudo Verdade:

– 12/4 – 18h – Itaú Cultural (São Paulo)

– 13/4 – 14h – Reserva Cultural (São Paulo)

– 13/4 – 18h – Espaço Itaú Botafogo – Sala 3 (Rio de Janeiro)

– 14/4 – 20h – Instituto Moreira Salles (Rio de Janeiro)

– 15/4 – 19h – Espaço Cultural BNDES (Rio de Janeiro)

 

*Editor do site Cine Festivais

Fonte: Opera Mundi

Compartilhe:

Leia também