Colômbia

Esquerda colombiana: “O acordo de Havana não foi destruído”

22/12/2017

O semanário VOZ, jornal dirigido pelo Partido Comunista Colombiano (PCC), reuniu, no dia 17/12, na sala “Manuel Cepeda Vargas”, em suas instalações em Teusaquillo, um seleto grupo de líderes da esquerda, para discutir a integridade do Acordo de Havana, suas perspectivas e a importância de um projeto alternativo para a democracia e a justiça social. Participaram do debate os senadores Iván Cepeda Castro (Polo Democrático Alternativo) e Jairo Estrada Álvarez (Vozes da Paz), Jaime Caycedo Turriago, Secretário-Geral do Partido Comunista da Colômbia e Rodrigo Granda ou “Ricardo Téllez” da Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC). Pelo semanário VOZ participaram seu diretor, Carlos A. Lozano Guillén, e os editores Carolina Tejada e Hernán Camacho.

Foram formuladas três perguntas para o debate entre os entrevistados:

1.- Qual o balanço que você faz da implementação do Acordo de Havana? Foi destruído ou está pela metade ou ainda abaixo dela? O que aconteceu no Congresso da República?

2.- Qual é a perspectiva do Acordo? Alguns analistas dizem que chegou a hora de uma Assembleia Nacional Constituinte? Em sua opinião, há alguma possibilidade? Qual é a alternativa?

3.- O significado da unidade quando um processo eleitoral está em andamento e a união de forças é imposta à esquerda e às forças progressistas e democráticas para abrir o caminho para mudanças democráticas e sociais e defender o Acordo de Havana e os diálogos com o ELN.

Uma grande conclusão é que o Acordo de Havana não foi destruído; existem possibilidades de avançar em sua defesa, para as mudanças estruturais que o país reivindica. Uma nova Colômbia é possível.

Qual o balanço que você faz da implementação do Acordo de Havana? Foi destruído ou está pela metade ou ainda abaixo dela? O que aconteceu no Congresso da República?

Jairo Estrada (Vozes da Paz):

A implementação normativa na sua fase parlamentar, não cumpriu o que foi planejado. Em particular, as tarefas da reforma política estão pendentes, em geral estamos falando sobre o conteúdo da abertura democrática; nas questões agrárias, não houve muitos avanços, embora a aprovação por decreto do fundo da terra e a formalização do mesmo sejam enfatizadas.

Em termos de vítimas e conflito, o sistema integral foi aprovado, mas houve reduções significativas em relação às expectativas que existiam antes da Jurisdição Especial para a Paz. É conveniente lembrar que a implementação é um processo em um campo em disputa que não se reduz à implementação normativa e, por essa razão, as análises feitas não podem ser inscritas exclusivamente nesse aspecto. Em suma, não há avanços legislativos suficientes e muitas tarefas a serem cumpridas.

Urgências

Destaco que entre essas tarefas, as mais urgentes são: o contexto normativo do Plano do Marco de Implementação e do cadastro com propósitos múltiplos, que são as fundamentais no momento da implementação. Com exceção de setores importantes que acompanharam o processo de paz, o Congresso não esteve à altura do momento histórico. Particularmente, há de se destacar a contenção do Centro Democrático, assim como as posturas da Mudança Radical e do estrito interesse eleitoral, que provocaram seu apoio à paz.

Gostaria de destacar o trabalho de setores que acompanharam o processo de paz, como o Polo Democrático, alguns membros da Aliança Verde, da Opção Cidadania, setores majoritários de La U (1) e do Partido Liberal, bem como setores indígenas.

Iván Cepeda (Polo Democrático Alternativo):

Esta implementação mostrou que a crise no sistema político colombiano é incorrigível. Este processo de implementação no Congresso, uma instituição inviável com uma crise de longo prazo, que começou com os escândalos na política e que vemos hoje, no escândalo do cartel da toga e os efeitos da participação paramilitar no parlamento. A implementação destacou a estrutura do Estado colombiano e a essência do sistema político que demanda uma reforma profunda, no sentido de que a ideia de uma constituinte como um pacto político nacional, contida no acordo, está em vigor. A crise é tão profunda que percebo que as reformas do judiciário e as políticas tratadas por este Congresso são inviáveis. As mudanças necessárias para o país exigirão novas regras do jogo.

No entanto, a natureza do Acordo de Paz é poderosa, não é trivial, como alguns setores apontaram. Na minha opinião, é o aspecto potencial e transformador do acordo. O acordo não é a entrega do país às FARC, isso é mais uma mentira. O que prova a existência do Acordo de Paz é que ele toca os fundamentos do país, o sistema político e o modelo econômico, tanto que, quando se chega aos pontos mais críticos da questão, surge um consenso no establishment para tentar limitar ao máximo o alcance do acordo, e refiro-me à negação a legislar, no essencial, sobre a estrutura e o mandato de terras na Colômbia.

Extrema-Direita

Não sou um daqueles que acreditam que o acordo está em frangalhos. Enquanto a extrema direita continuar a manter sua dura posição em relação aos acordos, é um bom sinal, para entendermos que o que foi alcançado até agora é fundamental. Por exemplo: a participação política do novo partido é uma conquista de dimensões democráticas e de grande valor, a participação da FARC no cenário eleitoral e no debate público é uma vitória.

Estou seguro de que o Sistema de Verdade, Justiça, Reparação e não Repetição é uma dor de cabeça para os autores dos crimes de Estado e das violações dos direitos humanos a partir da função pública.

Ricardo Téllez (Farc):

Considerávamos que a etapa mais difícil fora em Havana e acreditávamos que a implementação seguiria seu caminho, sem grandes dificuldades. Mas as dificuldades apresentadas após a assinatura do acordo são muito grandes. Primeiro, porque outros atores do Estado entraram em cena para jogar um papel na implementação, como o Tribunal Constitucional, que mudou toda a essência da “via rápida”, e o Congresso, que abriu uma fase de renegociação e mudanças no acordo. O resultado é a desfiguração do acordado. O que é conhecido hoje como o acordo não é o que assinamos em Cuba.

Se nos concentrarmos no primeiro ponto, poderemos denunciar que o primeiro hectare de terra não foi dado aos camponeses. Para os ex-combatentes que hoje são camponeses ansiosos para cultivar a terra, o acordo não chegou, não há terra para seus projetos de produção. Dos 32 espaços para reincorporação, o governo nacional só soltou verba para financiar três projetos produtivos.

Promessas não cumpridas

O entorno dos cenários de guerra e a implementação de políticas sociais em torno dos territórios onde estávamos presentes, resultaram em promessas não cumpridas. O que cria uma situação complexa para os habitantes. Um ano depois da anistia, podemos dizer que 1.125 prisioneiros de guerra ainda não recuperaram sua liberdade. E há outros ex-combatentes que, quando deixam a prisão, são capturados para serem levados a audiências criminais, acusados de rebelião. Começa também a campanha de mídia por crimes sexuais, que estavam fora das sanções do JEP (2). Estes exemplos são básicos em termos de conformidade para o Estado; é por isso que o que acontece é a disputa legal, a mobilização social e o protesto pelo cumprimento dos acordos, que se tornaram ferramentas de trabalho político do povo colombiano. O acordo é um avanço e uma ferramenta de ação política.

Não vamos cair na armadilha de um retorno à via armada. A liderança das FARC foi totalmente clara. Então, aqueles que pretendem que nos desesperemos, porque afirmamos que essa paz pertence a todos nós, e os que querem aproveitar a paz contra os acordos serão deixados de fora da história.

Jaime Caycedo (PCC):

Em relação à implementação do acordo, seus frutos devem ser valorizados. Precisamos aprofundar uma nova correlação de forças, porque a paz exigirá uma ampla força de massa, largamente definida. É por isso que devemos comprometer muito mais os setores populares e a solidariedade com os territórios e suas próprias demandas. Já podemos ver um clima de agrupamento de organizações sociais e lideranças que permitirão, pouco a pouco, alimentar uma força a serviço da paz.

Reclamamos sobre a falta de vontade do Estado, mas devemos ter em mente que somos um país condicionado à vontade dos Estados Unidos e seus interesses políticos e militares que têm um forte impacto sobre a política colombiana, digamos que há uma incapacidade de que a burguesia seja capaz de trazer uma paz razoável, então não há de se perder tempo, impondo obstáculos para que as coisas não avancem.

Qual é a perspectiva do Acordo? Alguns analistas defendem a ideia de que chegou o momento de uma Assembleia Nacional Constituinte. Há alguma possibilidade? Qual é a alternativa?

Jairo Estrada (Vozes da Paz):

Gostaria de enfatizar que o momento político, identificado por historiadores e estudiosos das lutas de classes, é de incutir ao povo medo das reformas. O poder transformador dos acordos de Havana é de tal importância que sua implementação desencadeia forças violentas. O que significa que estamos nessa forte luta ideológica. Gosto da frase de Gramsci, “o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer”, e neste instante aparecem todos os demônios. Ou dando lugar a um ciclo reformista ou para que continue um período de gatopardismo (3).

A mudança política e cultural do acordo de paz e sua implementação ainda são imperceptíveis. A maior transformação é a possibilidade de superar o estado de excepcionalidade permanente da guerra para um novo período histórico que vai disputar a paz e suas consequências. Essa é a primeira conquista dos acordos.

Guerra jurídica

De imediato, percebe-se a ideia de continuar a própria guerra do inimigo interno por meios políticos e judiciais. Para alguns, a guerra não terminou, mas mudou de cenário, sem deixar de lado a continuidade do assassinato de líderes sociais. A campanha da mídia contra os ex-guerrilheiros com a perda de prestígio por crimes sexuais, ou tudo o que está sendo ativado com a acusação de enriquecimento ilícito e jogarem um papel de testas de ferro, deixando uma manta de incerteza jurídica, é muito grave. A ideia de vingança ainda está viva e o caminho é retirar os ex-combatentes do JEP e levá-los à justiça comum como mecanismo de extensão da guerra.

Iván Cepeda (Polo Democrático Alternativo):

Os problemas da gigantesca luta democrática são o debate político colombiano para as próximas eleições e os próximos anos. Começa a batalha política mais importante para estes tempos e que se estenderá por vários períodos. O fim da via rápida não é o fim da implementação dos acordos porque todos os funcionários do Estado devem implementar o acordo para os próximos três períodos legislativos.

O outro componente a considerar é o internacional. O Estado colombiano adquiriu uma responsabilidade internacional que não pode ser excluída e que, nos próximos meses, terá resultados e repercussões, por exemplo: a decisão do Tribunal Constitucional de excluir os chamados terceiros civis e a responsabilidade dos altos funcionários do Estado, é uma decisão de repercussão internacional, ainda não determinada.

O Tribunal Penal Internacional emitiu um aviso sobre tais assuntos. Sob nenhum preceito, o JEP poderia ser uma instância para julgar e sancionar apenas uma das partes e menos ainda para garantir a impunidade dos crimes do Estado utilizando-se de militares de baixo escalão.

Ricardo Téllez (Farc):

Para nós, a prioridade é a reorganização do novo partido e a mudança na campanha política. As coalizões e alianças daqueles que querem abraçar o movimento pela paz, estamos aí, interessados em que a bancada da paz que comporá o próximo congresso tenha um número considerável, acreditamos que é necessário chegar a uma única candidatura presidencial de todos os setores sociais.

Constituinte

Desde Havana, pedimos uma Assembleia Constituinte. Mas, realmente, o que não foi cumprido do acordo e as modificações retrógradas dos acordos podem definir a médio prazo os motivos de uma Assembleia Nacional Constituinte, porque a crise da classe governante é profunda. A situação política muda para melhor, as maiorias são pelos avanços e a consolidação da paz e, por outro lado, aqueles que querem continuar com o regime de dominação estão em crise com a consequência prejudicial que isso traz, como parar os avanços sociais e democráticos do país. Este é o motivo para a importância do governo de transição com uma plataforma e um programa mínimo com uma nova maneira de fazer política. Tudo o que se vê na política, com as relações e ações mafiosas, devem mudar no país.

Jaime Caycedo (PCC):

O que este sistema político e econômico tem a oferecer para sua continuação: a guerra de baixa intensidade, com o prolongamento do genocídio como instrumento político e uma ferramenta de submissão. É por isso que penso que figuras, como Vargas Lleras, assumem as bandeiras do Uribismo para alinhar toda a direita em favor das eleições, com um discurso de contrainsurgência social e atacam a esquerda com qualquer desculpa, como o mote do “castrochavismo”.

Existe a oportunidade de criar as condições para avançar nesta etapa. Por exemplo, a lista unitária e a convergência no plano legislativo e o esforço para concretizar a ideia de mudança política com uma poderosa carga democrática. Aqui, o que é necessário é um governo que cumpra esse quesito que tem grande impacto nas massas. Estão sendo realizadas greves pelas promessas que foram quebradas. É possível uma mudança democrática se gerenciarmos inteligentemente as decisões de unidade.

O significado da unidade quando um processo eleitoral está em andamento e a união de forças é imposta à esquerda e às forças progressistas e democráticas para abrir o caminho para mudanças democráticas e sociais e defender o Acordo de Havana e os diálogos com o ELN.

Jairo Estrada (Vozes da Paz):

O Acordo de Paz serviu para reconfigurar o espectro político. Nos aproximamos de definições ideológicas mais claras, entre a direita com características fascistas, a extrema-direita e o espectro da esquerda, e este processo revela claramente o ajuste político e, com ele, uma configuração política do sistema que supera as características clientelistas, criminosas e corruptas.

Essa reconfiguração que está sendo projetada, permite justamente um processo de unidade com um significado diferente. Isto é o que a direita e a extrema-direita fazem e vem se mostrando em muitas tendências. Vamos com uma unidade, que neste momento segue naturalmente, sem ser forçada, mas que busca impulsionar as definições e ações programáticas. Somente com os esforços da Coalizão Colômbia. Outro ponto importante é o que resulta na Lista Decente. E há a manifestação da vontade das FARC de alcançar uma grande convergência nacional

Unidade, unidade

À medida que o processo eleitoral for desencadeado, serão realizadas reuniões, mesmo com a candidatura do Partido Liberal. Vejo no espectro político que o processo eleitoral não está sendo construído de forma forçada, mas está amadurecendo naturalmente. Agora, o esforço de unidade será estéril e insuficiente se pensar apenas na mobilização eleitoral no próximo ano.

Iván Cepeda (Polo Democrático Alternativo):

Existem características fundamentais, primeiro a pluralidade de forças no espectro popular e na esquerda, como raramente ocorreu na história, há uma série de novas forças, incluindo o novo partido e a União Patriótica, que são dois exemplos do cenário político no momento. Os índios e os afrodescendentes com uma história recente, o progressismo que também conseguiu vincular-se com força no espectro político e agora eleitoral, e as forças da tradição parlamentar, como o Polo e a Aliança Verde. Existe uma possibilidade real de um bloco social e popular que pode se converter em uma perspectiva governamental. Mas, pode-se notar que toda essa pluralidade pode se tornar uma dispersão, portanto há a necessidade de fortes alianças, coalizões e diálogo entre as coligações. Ao pensar não só na luta eleitoral de 2018, mas também em 2019, isto é, ganhar a unidade para enfrentar essas lutas eleitorais e sociais que ocorrem em todos os momentos.

Jaime Caycedo (PCC):

Devemos cuidar da unidade da vanguarda e introduzir o elemento constituinte na unidade dos processos eleitorais e de massa das forças progressistas e democráticas do espectro da paz e da transformação. A Lista da Decência é um grande valor que nos obriga, devido às nossas próprias circunstâncias políticas, a apresentar também, como declarou o Partido Comunista, um programa comum. Temos a certeza de que a ideia substancial é converter cada luta social e cada plataforma eleitoral em um conteúdo constituinte.

NOTAS

1 – La U – Partido Social de Unidade Nacional, conhecido na Colômbia como La U; nota da Redação do Resistência.

2 – JEP – Justiça especial para a Paz; nota da Redação do Resistência.

3 – Gatopardismo é uma expressão que, na ciência política, significa “mudar tudo para que nada mude”, paradoxo exposto pelo escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) no livro El gatopardo. A frase original é “Se queremos que tudo continue como está, é necessário que tudo mude”, nota da Redação do Resistência.

 Fonte: Semanário Voz, tradução da Redação do Resistência

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