Opinião

Gabriel Ángel: A última marcha guerrilheira

05/02/2017

Observei pelas redes a difusão de vídeos e imagens de guerrilheiros e guerrilheiras das Farc-EP deslocando-se para as Zonas de Transição, nas quais ocorrem a deposição das armas e a reintegração à vida civil. Não pude evitar a tristeza ao pensar que se trata da última de suas marchas como guerrilheiros insurgentes.

Recordo que em meus primeiros dias nas fileiras escutei um camarada falar sobre as marchas. Ele as definia como algo que se tinha de mais bonito na vida guerrilheira. Nelas era posta à prova a coragem dos combatentes. Primeiro, pelo peso que se tinha que levar nas costas, das bagagens, que costumavam pesar em torno de 45 quilos, às quais tínhamos que agregar os alimentos e as armas.

O esforço físico que aquilo implicava exigia força física e moral. Eram horas e horas transitando por diversos tipos de relevo e quaisquer que fossem as condições do clima, sob sol ou lua, se ela houvesse. Geralmente durante vários dias, que por vezes poderiam ser semanas ou mesmo meses. Cada um tinha que responder por si mesmo, não poderia ser o obstáculo para o grupo.

Era incômodo quando algum ficava para trás devido ao cansaço e atrasava a marcha do grupo. Normalmente, o comando esperava até quando não podia mais, e então dava ordem de rebocá-lo, ou seja, repartir suas coisas entre os demais para ajudá-lo em sua fraqueza. Tinha que ser assim para que nenhum esperto quisesse se aproveitar dos outros.

O rebocado continuava caminhando dominado pela vergonha. Alguns lhe compreendiam e lhe davam palavras de alento. Outros, os machistas, como se costumava qualificar, aproveitavam para criticar com acidez sua debilidade. Eram coisas que logo eram esquecidas, exceto quando havia algum, homem ou mulher, a quem isto ocorria frequentemente. Então a reação era de ojeriza.

O café da manhã era recebido cedo e era embalado a um lado da bagagem. A apetitosa tortilha adocicada de farinha de trigo, talvez um pedaço de carne frita e meio copo de chocolate que se levava na garrafa. Se a marcha saísse às 5 horas, um pouco antes das 7 se parava para tomar o café da manhã e descansar um pouco.

Depois se retomava a caminhada com breves paradas de dez minutos a cada hora a fim de recuperar as forças. Nunca deixavam de aparecer obstáculos ou imprevistos. O vale coberto de água ou o rio que devíamos atravessar. Os longos trechos de estradas cobertas de barro em que as botas afundavam até os joelhos, as íngremes encostas pelas quais era preciso subir.

Era proibido falar em voz alta. As comunicações eram transmitidas de combatente a combatente, falando-se ao seu ouvido. Entre um e outro podia haver 5 metros de distância. Também existia um código de sinais que eram feitos com as mãos. Se um via que os que estavam adiante elevavam a mão à cabeça e tiravam a boina significava que havia civis no caminho.

Então sucedia a ordem para se esconder. Corriam como um raio para a esquerda ou para a direita, deitavam-se no solo cobrindo-se com a vegetação, ou se escondiam atrás de troncos espessos para não serem vistos. Uma vez que os civis já tinham passado e se perdiam na distância, os guerrilheiros saíam do esconderijo e a marcha recomeçava na ordem idêntica como vinha antes.

Cada cruzamento de caminho tinha que ser coberto. Então, em ordem, cada guerrilheiro se mantinha ali com sua arma pronta, enquanto o que vinha atrás o alcançava e repetia seu gesto. Nos descansos, guardas ficavam situados lado a lado das fileiras. A vanguarda, um pouco à frente do grupo, e a retaguarda, um pouco mais atrás do mesmo, eram encarregadas da segurança nas extremidades da marcha.

O almoço também era levado nas bagagens. Uma mistura de arroz branco com feijão e lentilhas ou ervilhas, ao qual chamávamos empedrado. A sobremesa, uma limonada ou um refresco, eram preparados às pressas pelos encarregados que geralmente corriam com as jarras ao cano mais próximo em busca de água. Era a parada mais longa de uma marcha. Poderia durar até uma hora.

À noite as marchas nunca rendiam tanto como durante o dia. Principalmente quando era proibido iluminar e tinha-se que caminhar com os olhos postos sobre os que caminhavam à frente. Por isso, no escuro, a distância de um ao outro desparecia e era reduzida a menos de um metro. Tínhamos que caminhar como se pedalássemos e atentos se os ombros de quem nos precedia subiam ou desciam.

Assim era sabido se o terreno afundava ou se elevava, e preparávamos o passo antes de dá-lo. Em caso de algum buraco onde se podia cair, tinha que parar ao lado e advertir sobre isso ao que vinha atrás, em voz baixa, inclusive dar-lhe a mão para que passasse ileso. Este devia repetir o mesmo procedimento com o que vinha atrás dele.

Evidentemente não faltavam acidentes, como rolar de um sopé de colina abaixo, o que costumava ocorrer em caminhos que cortavam ladeiras de encostas. Logo alguém gritava: “Foi-se um!” E os demais o escutavam bater contra o solo e os troncos por alguns segundos. O mesmo se encarregava de indicar se estava bem ou se precisava que descessem para ajudá-lo.

Se a coisa não era grave, se convertia de imediato em piada. Os guerrilheiros sempre estavam felizes, mesmo nos momentos mais difíceis, dispostos a rir a gargalhadas pelo menor motivo. Esses acidentes costumavam ser um. Sempre inculcamos a ideia de que o bom humor era reflexo de alta moral. Um guerrilheiro irascível tinha sentido de desmoralização para os outros.

Terminada a jornada, tinha que construir o abrigo em que passaria a noite, buscar com facão nas mãos suportes para a rede ou folhas de palmeira para estender no piso e varas para amarrar toldo e lona. Correr para o cano, tomar um banho, lavar a roupa, a mesma que estava vestido deixava escorrendo durante a noite, voltava a vestir na manhã para não sujar outra.

Isto era suportável em climas quentes, mas uma tortura quando tinha que fazê-lo em montes frios. Não fazê-lo implicava em carregar mudas de roupa molhada na bagagem, algo que a ninguém agradava, pois iam somando dois a até três, ou seja, um peso maior a cada dia, sem solução em perspectiva. Se havia um dia descanso, secar essa roupa era uma tarefa inadiável.

Marchava-se para mudar de zona de operação, ou de acampamento, ou para cumprir alguma missão específica, para ir a um combate ou regressar dele. Podiam juntar feridos ou enfermos para carregar em maca, uma façanha para a qual era escolhido um grupo especial que trabalhava com autêntico heroísmo, pois não descansavam um só instante durante horas.

Por muitos anos foi proibido usar veículos ou canoa para se descolar. Todo deslocamento tinha que ser feito a pé. Não creio que existia alguém capaz de caminhar tantos quilômetros sem descansar, como pode um guerrilheiro em boa saúde. Mulheres e homens se habituavam por igual às mais duras jornadas sem queixar-se por isso.

A autorização dos meios de transporte foi ocorrendo pouco a pouco, na medida em que se desenvolvia a guerrilha e criava melhores condições de segurança. Caminhões, vãs, canoas a motor e voadoras começaram a ser usadas quando as condições permitiam. Em muitos casos, seu uso indevido causou tragédias com mortes, feridos e prisões em massa.

Agora vejo os guerrilheiros em caravanas de automóveis e embarcações, escoltados inclusive por garantidores internacionais, com destino a zonas de desarmamento. Vestem seus uniformes verdes, colocam suas cargas no seu veículo, portam suas armas e sorriem e fazem piadas entre eles. Sua moral é alta, sem dúvida, apesar de que sabem que nunca mais as coisas serão iguais.

Confesso que a nostalgia me invade. Foram muitos anos, talvez sejam muitos mais para outras pessoas do que para nós. O melhor das nossas vidas se foi em cada passo nas marchas. Muitos dos companheiros com quem vínhamos, já não nos acompanham. Mas outros milhares, sim. Agora empreendem sua última marcha, e, como parte a alma saber disso!

Gabriel Ángel, no FARC-EP, traduzido por Luci Nascimento para Resistência

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