Líbia

Manlio Dinucci: Libia, a grande divisão

03/08/2016

Petróleo, imensas reservas de água, bilhões em fundos soberanos. O butim sob bombas.

Por Manlio Dinucci

“A Itália avalia positivamente as operações aéreas realizadas hoje pelos Estados Unidos sobre alguns objetivos do Daesh (o chamado Estado Islâmico, na sigla em árabe, NdT), em Sirte. Estes ocorrem sob demanda do Governo de Unidade Nacional, em apoio às forças fiéis ao Governo, com o objetivo comum de contribuir para restabelecer a paz e a segurança na Líbia”: é o que diz o comunicado divulgado pela Farnesina (sede do Ministério das Relações Exteriores da Itália, NdT), em 1° de agosto.

Aqueles que pensam na “paz e na segurança da Líbia”, são os mesmos que, depois de ter desestabilizado e esmagado o Estado líbio com a guerra, vão recolher o espólio com a “missão de assistência internacional à Líbia”. Esta é a ideia que transparece por meio de vozes autorizadas. Paolo Scaroni, que na direção da ENI manobrou na Líbia entre facções e mercenários e é hoje vice-presidente do Banco Rothschild, declarou ao Corriere della Sera que “é preciso pôr fim à ficção da Líbia”, “país inventado” pelo colonialismo italiano. Deve-se “favorecer o nascimento de um governo na Tripolitânia, que apele às forças estrangeiras para ajudá-lo a ficar de pé”, estimulando a Cirenaica e Fezzan a criar seus próprios governos regionais, eventualmente com o objetivo de federar-se a longo prazo. Enquanto isso, “cada um gerenciaria suas fontes energéticas”, presentes na Tripolitênia e na Cirenaica.

É a velha política do colonialismo do século 19, atualizada com finalidades neocolonialistas pela estratégia dos EUA e da Otan, que destruiu Estados nacionais inteiros (Iugoslávia, Líbia) e dividiu outros (Iraque, Síria), para controlar seus territórios e seus recursos. A Líbia possui quase 40% do petróleo africano, precioso pela alta qualidade e o baixo custo de extração, e grandes reservas de gás natural, de cuja exploração as multinacionais estadunidenses e europeias podem obter hoje lucros superiores aos que obtinham anteriormente do Estado líbio. Eliminando o Estado nacional e tratando separadamente com grupos no poder na Tripolitânia e na Cirenaica, podem obter a privatização das reservas energéticas estatais e, portanto, o seu controle direto.

Além do ouro negro, as multinacionais estadunidenses e europeias querem apropriar-se do ouro branco: a imensa reserva de água fóssil do aquífero núbio, que se estende sob a Líbia, o Egito, o Sudão e o Chade. O Estado líbio já tinha demonstrado as possibilidades que esse aquífero oferece, construindo aquedutos que transportavam água potável e para irrigação, milhões de metros cúbicos por dia extraídos de 1.300 poços no deserto, ao longo de 1.600 quilômetros até as cidades costeiras, tornando férteis as terras desérticas.

Nos atuais raids aéreos dos EUA na Líbia participam caças bombardeiros que decolam de porta-aviões no Mediterrâneo e provavelmente das bases na Jordânia, assim como os drones Predator armados com mísseis Hellfire que decolam de Sigonella (base na Itália, NdT). Encenando o papel de Estado soberano, o governo Renzi “autoriza caso a caso” a partida dos drones armados pelos EUA na base de Sigonella, enquanto o ministro do Exterior, Gentiloni, deixa claro que “a utilização das bases não requer uma comunicação específica ao parlamento”, assegurando que “não se trata de um prelúdio de uma intervenção militar” na Líbia. Quando na realidade a intervenção já começou: forças especiais estatunidenses, britânicas e francesas – confirmam Telegraph e Le Monde – operam há tempos secretamente na Líbia para apoiar “o governo de unidade nacional do premier Sarraj”.

Desembarcando cedo ou tarde oficialmente na Líbia com a motivação de libertá-la da presença do Isis (sigla em inglês do chamado Estado Islãmico, NdT), os EUA e as grandes potências europeias podem também reabrir as suas bases militares, fechadas por Kadafi em 1970, em uma importante posição geostratégica na interseção entre o Mediterrâneo, a África e o Oriente Médio. Enfim, com a “missão de assistência à Líbia”, os EUA e as grandes potências europeias repartem entre si o butim da maior rapina do século: 150 bilhões de dólares em fundos soberanos líbios confiscados em 2011, que poderiam quadruplicar-se se a exportação energética líbia voltasse aos níveis anteriores.

Parte dos fundos soberanos, na época de Kadafi, foi investida para criar uma moeda e organismos financeiros autônomos da União Africana. Os EUA e a França – isto está provado nos e-mails de Hillary Clinton – decidiram bloquear “o plano de Kadafi de criar uma moeda africana”, como alternativa ao dólar e ao franco Cfa. Foi Hillary Clinton – documenta o New York Times – que convenceu Obama a entrar em ação. “O presidente assinou um documento secreto, que autorizava uma operação clandestina na Líbia e o fornecimento de armas aos rebeldes”, inclusive a grupos que até há pouco eram classificados como terroristas, enquanto o Departamento de Estado dirigido pela Clinton os reconhecia como “legítimo governo da Líbia”. Ao mesmo tempo, a Otan sob comando estadunidense efetuava o ataque aéreo com dezenas de milhares de mísseis, desmantelando o Estado líbio, atacado ao mesmo tempo internamente por forças especiais também do Catar (grande amigo da Itália). O consequente desastre social, que fez mais vítimas do que a própria guerra sobretudo entre imigrantes, abriu o caminho à reconquista e à divisão da Líbia.

Fonte: Il Manifesto; traduzido por José Reinaldo Carvalho para o Resistência.

Manlio Dinucci é jornalista e geógrafo

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