Opinião

No refúgio, palestinos resistem às consequências da promessa colonial britânica 

03/11/2017
Entrada de Ein al-Hilweh, com um posto de controle libanês / Foto: Moara Crivelente

Em 1917, o chanceler britânico selou o destino do povo palestino para o século. Talvez Lorde Arthur Balfour não previsse a dimensão das consequências ao prometer a Palestina ao movimento sionista. Mas o centenário é comemorado pela liderança britânica e israelense nesta quinta-feira (2) e denunciada por um povo sob ocupação ou refúgio que ainda resiste às consequências, em luta por libertação também no exílio e nos campos de refugiados. 

Por Moara Crivelente, de Beirute

Lembranças em uma loja em Chatila / Foto: Moara Crivelente

Lembranças em uma loja em Chatila / Foto: Moara Crivelente

Chatila não é o maior dos 12 campos de refugiados palestinos no Líbano. Entretanto, ruas espremidas, a infraestrutura precária, a grande concentração de pessoas e os reflexos das condições sociais consequentes da política libanesa de controle e exclusão dão a impressão de que este é um campo de maiores proporções. 

Desde a eclosão da guerra na Síria, milhares de palestinos e sírios também buscaram refúgio aqui e em outros campos no país. Segundo a Agência das Nações Unidas para Assistência e Trabalhos para os Refugiados da Palestina (UNRWA), dos 449.957 palestinos registrados por ela como refugiados no Líbano, quase 10 mil vivem em Chatila. Entretanto, associações locais consideram que são muitos mais, fora do procedimento burocrático, não registrados. 

Ao todo, a UNRWA estima em cinco milhões os refugiados registrados aos quais presta assistência na Síria, no Líbano, na Jordânia e no território palestino ocupado por Israel, aqueles forçados a deixar suas casas e vilas no que é hoje território israelense. O processo cravado na memória nacional como a Nakba, a “catástrofe”, culminou no estabelecimento do Estado de Israel, deixando pendente o Estado da Palestina, em 1948, segundo o plano de 1947 da Assembleia Geral da ONU para a partilha do território. Entretanto, é preciso reafirmar, sempre, que a catástrofe é contínua, seja no território e na vida sob ocupação militar, colonização e cerco, seja no exílio e nos campos de refugiados. 

Cartaz da promessa de Balfour em Chatila demanda a responsabilização britânica / Foto: Moara Crivelente.

Cartaz da promessa de Balfour em Chatila demanda a responsabilização britânica / Foto: Moara Crivelente.

Foi em 2 de novembro de 1917 que o chanceler Arthur Balfour transmitiu o apoio da Coroa Britânica ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu na Palestina” em carta ao Lorde Rothschild, então proeminente líder do movimento colonial-sionista no Reino Unido, a Federação Sionista, estabelecida em 1899. 

As potências imperialistas, Reino Unido e França, avançavam com sua própria partilha de grande porção do Oriente Médio, tomada do Império Otomano, uma partilha firmada em 1916 pelos respectivos diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot. Os povos da região foram submetidos à colonização europeia, em média, até a década de 1940. O movimento sionista prosperou, com o caminho para a colonização da Palestina aberto pelo chamado Mandato Britânico (1923-1948), estabelecido pela antiga Liga das Nações e findo com a criação do Estado de Israel. Mais de 15 mil palestinos foram mortos, cerca de 750 mil forçados ao refúgio e quase 500 vilas foram destruídas no processo. Os números são conhecidos, mas são repetidos para resistir ao esquecimento. 

Pela promessa, digna de uma potência imperialista e colonial, e pelo rumo que tomou, os palestinos promovem uma campanha global demandando a responsabilização do Reino Unido. A iniciativa é popular, na Palestina e no exílio, e também da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Em julho de 2016, em reunião da Liga Árabe, o chanceler palestino Riyad Al-Maliki abordou a possibilidade de uma ação legal contra o governo britânico. Comunidades palestinas e movimentos de solidariedade somam-se a esta campanha. No Brasil, a direção nacional da Federação de Entidades Árabe-Palestinas (FEPAL) protocolou uma carta na Embaixada do Reino Unido para reforçar a denúncia. E na quarta-feira (1º/11) o diário britânico The Guardian, publicou o artigo do presidente palestino Mahmoud Abbas intitulado “A Grã Bretanha deve se redimir pela declaração de Balfour — e 100 anos de sofrimento”. Iniciativas diversas palestinas e internacionais prometem contar esta história, combatendo a versão heroica paulatinamente repetida pela liderança conservadora britânica e a liderança colonialista e racista de Israel. 

Premiê britânica Theresa May discursa em evento do grupo parlamentar Amigos Conservadores de Israel, em 2016

Premiê britânica Theresa May discursa em evento do grupo parlamentar Amigos Conservadores de Israel, em 2016

Atuando nesta peça teatral, nesta quinta-feira (2), a primeira-ministra Theresa May e o premiê israelense Benjamin Netanyahu encontram-se em um jantar comemorativo do centenário, evento que mobiliza o aparato securitário para barrar manifestantes do expressivo movimento britânico de solidariedade ao povo palestino. Mas talvez mais expressivo do desprezo do governo May pelo século de massacres, segregação e colonialismo que a declaração possibilitou é o fato de que os anfitriões do jantar, de acordo com o diário britânico The Guardian, são os atuais Lorde Balfour e Lorde Rothschild. 

Para os mediadores internacionais e a liderança israelense, a situação dos refugiados é moeda de barganha e milhões de palestinos assistem, não sem resistência, à possibilidade de retorno minguar, negligenciada ou manipulada. Por isso, a defesa deste direito é sempre aliada à defesa do próprio direito à autodeterminação do povo palestino. A palavra “retorno”, aqui, acompanha sempre o nome Palestina, por mais distante que pareça a terra do lado de lá da fronteira. Mas é retumbante também o apelo humanitário, que, no Líbano, se traduz na demanda por dignidade, enquanto o retorno tarda. 

Precariedade da espera 

Entrada do campo de refugiados Mar Elias, em Beirute / Foto: Moara Crivelente

Entrada do campo de refugiados Mar Elias, em Beirute / Foto: Moara Crivelente

Chatila é um campo de muitos refúgios. Antes dos refugiados da Síria, vieram também os palestinos que fugiam de outros massacres no próprio Líbano. Muitos vieram dos campos em Nabatiyeh e Tel al-Zaatar, que já não existem, durante a guerra civil (1975-1990) – quando falangistas libaneses também combatiam a resistência palestina no país. Entretanto, durante a segunda invasão israelense do Líbano (1982-1985), a própria região de Sabra e Chatila, em Beirute, foi cenário de um massacre coordenado entre as tropas israelenses e os falangistas. No caso destes, o pretexto era o de retaliação pelo assassinato de Bachir Gemayel, recém-eleito presidente do Líbano pelo partido Kata’eb, ou Falange, próximo de Israel. 

Segundo o jornalista Robert Fisk, que diz citar “as estimativas mais detalhadas” em seu livro Pity the Nation (1990, página 418), 17.825 pessoas foram mortas entre 4 de junho e o fim de setembro de 1982 em cenas horrendas das quais as pessoas aqui ainda têm memórias vívidas. 

O maior campo de refugiados no país é Ein al-Hilweh, em Saida, ao sul, com mais de 54 mil pessoas registradas pela UNRWA. A população pode ser estimada ainda em 80 mil, de acordo com associações locais, incluindo oriundos da Síria, do Iraque e do Sudão. Ein al-Hilweh é cercado por postos de controle militar libaneses e, para entrar, foi preciso pedir permissão com antecedência. Mesmo assim, algumas lideranças palestinas questionam a segurança efetiva do local, pretexto dado pelas autoridades libanesas para mantê-lo cercado. Militantes islamitas, armas e drogas têm entrado no campo, apesar do controle. 

Ali, grupos fundamentalistas que atuam na Síria e confrontos internos, assim como a precariedade das condições de vida, contribuem para o cultivo de um ambiente de tensão. O último confronto, em agosto, deixou mortos e marcas visíveis até mesmo no Centro de Solidariedade Social, que acolhe crianças desistentes da escola por diversos motivos, para atividades pedagógicas e recreativas. Residentes falam da desunião com desgosto, por considerarem-na um portão de entrada para tudo o que os enfraquece, e nunca de saída para qualquer solução. Por isso, o esforço de aproximação entre as diferentes correntes e partidos também é constante.

Edifício afetado pelos confrontos, com marcas de disparos / Foto: Moara Crivelente

Edifício afetado pelos confrontos, com marcas de disparos / Foto: Moara Crivelente

O cofundador do Centro para os Direitos dos Refugiados / Aidoun, pesquisador e consultor palestino no Líbano, Jaber Suleiman fala da conexão estreita entre a luta pelo direito dos refugiados ao retorno e pelo direito à dignidade no refúgio. Suleiman participa do Fórum de Diálogo Libanês-Palestino, onde se discutem as preocupações do governo libanês e as reivindicações da comunidade palestina, em uma tentativa de ultrapassar obstáculos profundamente enraizados na política doméstica. Como país acolhedor, o Líbano tem responsabilidades, mas a situação dos refugiados é extremamente politizada pelos diferentes partidos e grupos confessionais participantes da política. 

Como a situação social e humanitária dos refugiados palestinos no Líbano é alarmante – por exemplo, os palestinos são proibidos de exercer cerca de 70 profissões, ainda que sejam formados – a luta pelo retorno é associada diretamente à luta por direitos civis. Fica no horizonte, sempre, a injustiça imposta aos palestinos e a determinação do protesto contra ela. Nesta quinta-feira (2), por exemplo, famílias palestinas vestiram seus filhos com o kuffiyeh e bandeiras da Palestina para o dia na escola, desafiando a ordem contrária da direção da UNRWA no país. Nas suas escolas, em geral, são vedadas manifestações nacionalistas, de acordo com alunos e familiares. 

Nesta data, protestos na capital foram marcados para dois momentos, diante da sede da UNRWA e diante da Embaixada do Reino Unido, em Beirute, reunindo refugiados de outras regiões do país. E que ninguém se esqueça da catástrofe desencadeada por uma declaração de apenas uma página. 

A promessa transmitida há um século por Balfour ao movimento sionista e o Mandato Britânico na Palestina abriram as portas para a colonização, expulsando o povo árabe sem data para o regresso. Por isso, a campanha pela responsabilização do Reino Unido ganha força. Além disso, há exatos 50 anos, o jovem Estado de Israel também decidiu invadir e ocupar, com vistas à anexação, o restante território palestino, numa política em que, ainda hoje, segue contando com o apoio britânico, de outras potências europeias e, sobretudo, do principal aliado de Israel, os Estados Unidos. 

O avanço colonialista e de expulsão segue determinado, mas a resistência e a luta pelo retorno e a libertação, também, inspirando o crescente movimento internacional de solidariedade ao povo palestino. Neste centenário, que ele se fortaleça para fazer cumprir a promessa desencantada ao longo das últimas décadas, mas ainda cobrada, de retorno e de uma Palestina livre.

Fonte: Cebrapaz

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