Opinião

Para a crítica do programa da revolução passiva

20/02/2018

Marcos Aurélio da Silva*

O cientista político Luis F. Miguel fez em sua página de Facebook uma boa crítica a Marina Silva, que no sábado de 17/02 concedeu entrevista à Folha de São Paulo em torno do tema da eleição de 2018. O centro da crítica está na tola pretensão da nossa conhecida ambientalista em superar a “polarização social” – construir algo que esteja “à frente” “dessa polarização de centro, direita, esquerda”, disse a ex-ministra do governo Lula -, como se ela fosse apenas um produto do “discurso”.

Não surpreende muito que Marina Silva se apegue a este argumento para se apresentar como a candidata de um fraquíssimo reformismo – ainda mais fraco, entenda-se, que aquele conduzindo pelos governos do PT. A teoria do “discurso”, marcada pelo descolamento de todo enraizamento social, está no centro da onda pós-moderna da qual nossa ambientalista é uma das principais expoentes na política nacional. Aqui como em toda parte, seu programa é o de se apresentar como uma das opções de liderança daquilo que, sob inspiração da crítica gramsciana, tem sido chamado de “revolução passiva pós-moderna” no interior do “ciclo neoliberal”, em curso no Ocidente capitalista desde pelo menos os anos 1970, com intensidade variável conforme o país, suas relações de força (Azzarà, S. G. Restaurazione e rivoluzione passiva postmoderna nel ciclo neoliberale: un trasformismo intellettuale di massa, in: Historical Materialism Rome Conference 2015).

O fato é que o programa da “superação da polarização social” não encontra guarida só em Marina Silva. E se a sua existência em outros setores da vida política nacional não é novidade, inclusive naqueles que se posicionam à esquerda do espectro político – o que só um néscio poderia pensar ser o caso de nossa ambientalista -, a fase da militarização do golpe em que agora entramos parece ter lançado os que se apegam a esse programa em aberto desespero.

Já estão na praça as teses de um muito mal requentado althusserianismo, a apresentar Marx como um “anti-humanista”, um Marx que nada tem a ver com a “questão social”. O curioso é que Althusser sustentou nos anos sessenta este argumento para combater a onda “reformista”, “oportunista” ou simplesmente “revisionista”, a mesma que, negando a categoria de imperialismo, desembocaria anos depois na capitulação de Gorbachev (Losurdo, D. Il marxismo occidentale. Come nacque, come morì, come può rinascere. Roma: Laterza, 2017, p. 67). Agora, todavia, este argumento é levantado com a função de suprimir a “polarização social” inerente ao golpe, numa matreira operação que visa abrir espaço para uma nem sempre confessada aliança com as classes dominantes, as mesmas que compuseram com as forças pró-imperialistas (não sem algum grau de contradição, é verdade) na tarefa de levar a cabo o impeachment de Dilma Rousseff.

Seria sem dúvida concessão infantil a um “abstrato universalismo” – do qual a seu tempo nem mesmo Althusser escapou, insistindo na contraposição abstrata entre as categorias de “classe”, de um lado, e “homem” e “indivíduo” enquanto “universalidade”, de outro (Losurdo, passim) – querer que a superação do golpe nos leve rapidamente às portas do socialismo; uma situação pronta a forjar uma formação social em que as classes dominantes já não estariam no controle do aparelho produtivo nacional. Demovidos deste idealismo, às vezes de tintas ambientalistas, como gostariam Marina Silva e seus ideólogos – recorde-se a teoria do “descrescimento feliz” de Serge Latouche, a embalar uma certa etapa da revolução passiva pós-moderna na Europa de uns anos atrás – não estamos todavia autorizados a cancelar todo o conflito social que é parte da luta contra o golpe.

É mesmo curioso que o didatismo com que as classes dominantes se apresentam agora diante de nós ainda nos impeça de enxergar o óbvio. Ou talvez seja mesmo um sintoma de que o hábito de usar o cachimbo no lado direito da boca por tantos anos a tenha deixado inescapavelmente torta justamente para este lado. Impossível tergiversar. O enfrentamento do golpe exige reorganizar minimamente o Estado social que as classes dominantes, com graus variáveis (leia-se contraditórios) de associação com o imperialismo – que se recorde a tênue resistência que, no interior da Fiesp, a Abimaq ofereceu ao impeachment, ainda assim resistência -, reorganizar, dizíamos, o Estado social que as classes dominantes estão destruindo, e isso significa pôr no centro das lutas a “questão social” e a “polarização política” a ela inerente. Reorganização esta que é ela mesma o ponto de partida para um “humanismo integral”, vale dizer, um programa socialista a ser progressivamente implementado a depender de nossa capacidade de conduzir as relações de forças segundo os interesses populares e nacionais.

É tolice das mais rematadas pretender alcançar esta reorganização com o recurso a um althusserianismo “fora do lugar”, a rigor sua tradução tupiniquim em vestes delfinianas de má recordação – “primeiro façamos o bolo crescer, depois distribuímos” -, síntese da revolução passiva de outros tempos. Não é senão em aliança com as classes populares, pondo no centro do debate os direitos universais que a elas o golpismo está abertamente negando – o direito à saúde pública, à escola pública, à previdência pública, o direito ao trabalho – que se pode vislumbrar a superação do atual estado de coisas.

Se é verdade, como acima se disse, que a curto prazo isto não implica pôr em xeque o controle sobre os meios de produção em poder das classes dominantes – e isto obviamente em razão das relações de forças que estão diante de nós – , não é menos verdade que a possibilidade de desfazer o golpe passa não por uma apressada negação da “polarização” e da “questão social”, – que nas atuais condições mais que uma forma de “astúcia tática”, beira à poltronice -, mas pela capacidade que tiverem as forças populares, seus partidos e movimentos sociais, de pressionarem as classes dominantes a aceitarem um grau mínimo de vida social regulada que esteja a serviço das classes subalternas – como acima dito, o ponto de partida mínimo, não sem uma perspectiva de etapa, de qualquer projeto de transformação socialista que seja digno deste nome.

*Marcos Aurélio da Silva é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. É colaborador do Resistência

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