América Latina

Por que a Bolívia não é lembrada

15/02/2016

Desde o fim dos anos 1990 as forças progressistas chegaram à presidência da república em vários países da América Latina. No geral, têm sido experiências marcadas pelo aumento do gasto público em políticas de combate a pobreza e a miséria com sucesso considerável. As forças conservadoras sempre se posicionaram contra esses governos tratando-os de forma genérica de governos “bolivarianos”. Além disso, em vários momentos flertaram com o golpe de estado, e em pelo menos dois obtiveram sucesso: em Honduras (2009) e no Paraguai (2012).

Por Marcelo Pereira Fernandes*

Agora, em razão da recente vitória das forças conservadoras nas eleições presidenciais da Argentina e no parlamento venezuelano, a sanha da direita passou a conclamar o fracasso dos governos progressistas em toda região. Aqui não é o caso de analisar os motivos do revés da esquerda argentina e venezuelana. De fato, os dois países passam por graves dificuldades econômicas, consequência tanto da conjuntura internacional desfavorável, como de erros de politica econômica interna.

No entanto, vale lembrar como eram desalentadoras as condições econômicas e sociais herdadas por todos os governos progressistas após anos de aplicação sistemática de políticas neoliberais na América Latina. Na Argentina, onde provavelmente o neoliberalismo foi mais radicalizado, a experiência terminou em dezembro de 2001 com uma decretação de estado de sítio, a renúncia de dois presidentes em uma única semana, e a moratória da dívida externa. Hans Tietmeyer, ex-presidente do banco central alemão (Bundesbank) e encarregado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para avaliar as condições econômicas da Argentina após o colapso da economia, afirmou na ocasião em entrevista que “a Argentina está condenada a insignificância, provavelmente para sempre”.[1]

Hoje sabemos o quanto foi pessimista o representante do FMI. Mas na realidade eu gostaria de chamar a atenção para outro país. Estou me referindo à Bolívia que curiosamente nesse momento, em que os ataques contra os governos progressistas da região se agudizaram, parece ter tido uma trégua dos meios de comunicação que sustentam esses ataques. Exatamente o país que, presidido por um índio, sempre foi um dos alvos preferidos do ódio das elites latino-americanas. O “illegal coca-agitator” na visão do governo norte-americano[2].

A aplicação do neoliberalismo na Bolívia também teve efeito devastador. No governo Victor Paz Estenssoro (1985-1989) um conjunto de reformas denominadas de Nueva Política Económica (NPE) liderado pelo então ministro Gonzalo Sánchez de Lozada, fez da Bolívia o primeiro país latino-americano a adotar políticas de ajuste neoliberal em condições formalmente democráticas [3]. Mais tarde durante seu primeiro mandato como presidente (1993-1997), Lozada aprofundou a NPE, privatizando as principais empresas bolivianas, em especial a empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) do setor estratégico de petróleo e gás em 1996. Novamente eleito em 2002, Lozada renunciou em outubro de 2003 após uma revolta popular liderada por uma coalizão de movimentos sociais que exigia a nacionalização dos hidrocarbonetos. Fugiu para os Estados Unidos onde desfruta das mordomias advindas dos bons serviços prestados à elite norte-americana, enquanto na Bolívia é processado por genocídio devido à brutal repressão sobre as manifestações que o levaram à renúncia.

Ora, está claro que a vitória de Evo Morales em dezembro de 2005, líder de um partido com menos de 10 anos de existência, o Movimento ao Socialismo (MAS), está intimamente ligada com o fracasso das políticas neoliberais. Tais políticas exacerbaram as desigualdades sociais e regionais do país, tendo como símbolo as privatizações que provocaram a “Guerra da Água” (2000) e a “Guerra do Gás” (2003). Por isso, Morales, entre 2006 e 2012, nacionalizou as empresas de setores estratégicos da economia boliviana.  Iniciando pela YPFB e a revisão dos contratos com as multinacionais em 1º de maio de 2006, cumprindo uma de suas principais promessas de campanha. Posteriormente, em 1º de maio de 2008 a Empresa Nacional de Telecomunicações (Entel) administrada pela Telecom, companhia italiana de comunicações, foi nacionalizada. Em 1º de maio de 2010 foi a vez das companhias geradoras de energia elétrica; e em 2012 a tomada das ações da espanhola Red Eléctrica Internacional, responsável por 74% das linhas de transmissão de energia da Bolívia, completando a nacionalização do setor elétrico[4].

Assim, passado o alvoroço pelas nacionalizações, a Bolívia tem sido pouco comentada pela mídia. Talvez o seu bom desempenho macroeconômico explique a falta de lembrança. Desde 2006 a economia boliviana mantém um crescimento do PIB acima de 4%, com exceção em 2009, no auge da crise financeira internacional, ainda assim o crescimento de 3,4% foi o maior da América Latina. Isso significa uma expansão anual média de 5,1% entre 2006 e 2014. Por sua vez, os preços permanecem estáveis. Em 2014 a inflação foi de 5,8% pelo índice de preços ao consumidor. Um desempenho expressivo quando se tem em conta a política sistemática de aumento de salários: em termos reais o salário mínimo nacional teve um aumento de 87% entre 2006 e 2015[5].

A posição externa do país também é muito sólida. Em todo período do governo Morales (2006-2014) a Bolívia apresentou superávits na conta de transações correntes do balanço de pagamentos. Somente em 2015 deverá ser registrado um pequeno déficit em razão da forte queda dos preços dos hidrocarbonetos. Por sua vez, a dívida externa vem caindo consistentemente. Enquanto em 2005 a dívida externa representava 80,3% do PIB, em 2013 ela estava em 25,3%. E, assim como o Brasil, o banco central da Bolívia adotou uma política de acumular reservas internacionais. Em junho de 2015 o estoque de reservas estava em 14,7 bilhões de dólares, o que significa 43% do PIB, proporcionalmente uma das mais altas do mundo, senão a maior[6]. Nesse sentido, Morales pôde manter distância do FMI desde o começo do seu mandato, o que explica em parte os bons resultados obtidos até o momento.

O desempenho macroeconômico favorável ocorre em conjunto com uma série de políticas sociais, como o bônus Juancito Pinto que beneficia as famílias que mantém seus filhos na escola, o bônus Juana Azurduy voltado à redução da mortalidade materna e infantil, e a Renda Dignidade que oferece salário mensal aos maiores de 60 que não possuem qualquer renda. Vale observar que o aumento considerável das receitas do governo advindas da nacionalização das empresas[7] foi fundamental para levar a cabo as políticas sociais do governo.

E isso tudo acontece contrariando interesses, fazendo escolhas desagradáveis à elite do país. A Bolívia é realmente uma experiência interessante a ser observada nos próximos anos.

* Doutor em Economia, Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

[1] RAPETTI, Martín (2005). “La Macroeconomía Argentina durante la Post-convertibilidad: Evolución, Debates y Perspectivas”. Observatorio Argentina, policy paper, nº 5.

[2] MAIN, Alexander et al (2015). “Latin America and the Caribbean”. In: The Wikileaks Files. London: Verso.

[3] HOFMEISTER, Wilhelm (2004). Bolívia: a construção da democracia e a evolução do processo político. In: ARAÚJO, Heloísa Vilhena (org). Os Países da Comunidade Andina. Brasilia: Funag.

[4] Cf. “Bolívia nacionaliza empresa espanhola de energia”. Carta Capital, 1º de maio de 2012. Disponível em:< http://www.cartacapital.com.br/internacional/bolivia-nacionaliza-empresa-espanhola-de-energia >

[5] Cf. Ministerio De La Presidencia. Disponível em <http://www.presidencia.gob.bo/fuente/noticia.php?cod=3148>.

[6] Cf. Banco Central de Bolívia. Administración de las Reservas Internacionales – primer semestre 2015. Disponível em: <https://www.bcb.gob.bo/?q=pub_informes-sobre-inversion>.

[7] KLEIN, Herbert S. A Concise History of Bolivia. 2º ed. NY: Cambridge University Press, p.289

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