Entrevista

Theotonio dos Santos: “O que não está sob o controle dos EUA, passa a ser uma ameaça”

05/08/2016

cd970a6b-7fbe-4e1d-8d59-85aa88cb2b41Theotonio dos Santos, 79 anos, pode dizer que sentiu os grandes processos políticos regionais na carne, desde o seu exílio no Chile, depois do golpe de 1964 no Brasil, e seu novo destino no México desde 1973, até o retorno à sua terra natal com a redemocratização do país em 1985.  Ele é um dos pilares da Teoria da Dependência e, também do conceito de Sistema Mundial. Agora, passando por Buenos Aires, convidado pelo Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso), do qual foi um dos fundadores, lhe cabe explicar as razões pelas quais o governo de Dilma Rousseff está agonizante e a região sofre um retorno ao neoliberalismo, que parecia distante.

“Vejo a situação na América Latina como parte de uma ofensiva mais ampla em nível mundial”, declarou, nos escritórios do Clacso, onde o fator determinante é a perda do controle econômico e político pelo centro hegemônico do sistema mundial, que é os Estados Unidos.

– Como se manifesta essa ofensiva?

Há uma postura desesperada pela recuperação do poder, que se não teve o resultado pretendido, apresentou suficientes efeitos destrutivos locais. Este é o caso do Oriente Médio, onde há uma crise profunda e da Rússia, que integrou um projeto de colaboração e acaba de retornar à sua posição de grande inimiga da Europa.

– Este novo confronto começa na Síria?

A Rússia surge como uma ameaça sobretudo devido à sua aliança com a China, que a coloca novamente no esquema de disputa mundial. Por enquanto, apenas conseguiram criar algumas condições verdadeiramente difíceis na antiga União Soviética, mas os EUA não têm controle da situação.

–O ataque ao governo Dilma poderia ser explicado, então, pela aproximação aos países que formam o BRICS?

Tudo o que não está sob o controle dos EUA torna-se uma ameaça e o BRICS é uma ameaça estratégica para os EUA. Num certo sentido, é procedente, porque o BRICS ocupa um espaço que anteriormente era tomado pelos EUA. No caso da América Latina, as preocupações estadunidenses passam pelo petróleo e, especialmente, a Venezuela, que tem as maiores reservas do mundo e o Brasil, após a descoberta do pré-sal, que tem compromissos de parte dos lucros com a saúde, a educação, a ciência e a tecnologia.

– Quanto ao governo Dilma, o frearam, boicotaram, encheram o Congresso com maus representantes…

O que não é difícil … (risos).

– A pergunta é: por que o PT não conseguiu fazer nada contra isso?

O PT sempre teve um poder de barganha e uma das consequências desta política foi a de diminuir a intensidade da mobilização social e política.

– Esse foi seu grande erro?

Sempre que pude falar com Lula sobre essas coisas, disse-lhe que era preciso alcançar uma unidade de esquerda, ainda que negociando com quem quer que fosse, mas que era fundamental ter uma base forte para a negociação. Se você se restringe, cada vez mais começa a depender da negociação. Lula tinha um poder de negociação muito amplo e havia uma expectativa de que o PT e o PSDB governassem em alternância. Esta foi a exigência de Fernando Henrique Cardoso, após ter rompido com a Teoria da Dependência. Entretanto, houve muitas concessões desnecessárias e muito negativas. Porque um país não se pode dar ao luxo de patrocinar a criação e fortalecimento de uma minoria financeira que vive da improdutividade e especulação.

– Mas o PT nunca atacou esses grupos financeiros.

Pelo contrário, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, no governo Lula, é agora o Ministro da Economia do governo interino, de Michel Temer, e marca presença desde os governos de Fernando Henrique. É uma figura dos bancos internacionais. Isso ajudou a consolidar a relação de Lula com o sistema financeiro, mas o resultado foi catastrófico.

– O que aconteceu depois? Dilma não tem a mesma capacidade de negociação?

Há algumas questões a serem levadas em conta, primeiro o declínio dos preços do petróleo, aumentando a produção nos EUA através de fracking (1), que teve um grande impacto, durante certo período. Formou-se em torno de Dilma um grupo muito crítico à tentativa do PT de enfrentar tais situações negativas e exigiram que fosse feito um ajuste. Tudo isso aconteceu num cenário em que se dizia que vivíamos uma crise muito ameaçadora e a inflação crescente, que havia, era de 4 por cento, pouco mais. Mas, ocorreu o aumento da taxa de juros.

– Isso se deu em janeiro de 2014, quando Dilma assumiu seu segundo mandato.

Já em 2013, forçada pelo Banco Central, a presidenta Dilma começou a aceitar a ideia do aumento da taxa de juros. Assim, ela abria o caminho para a contenção do crescimento e não para o controle da inflação. Pelo contrário, uma coisa que defendo há anos, com diferentes correntes do pensamento econômico burguês, é essa história de que a inflação é o resultado de um excedente econômico que só pode ser contido por meios do aumento das taxas de juros.

– Uma receita monetária clássica.

O resultado dramático é que a inflação aumenta. O que você acha? Que a teoria e sua aplicação estão erradas, mas não, elas dizem que a taxa de juros subiu muito pouco. Cria-se um clima para tudo isso e aí a taxa já estava em 14% e vivíamos o declínio do crescimento econômico.

 – E, como será o futuro, Dilma voltará ou não?

A sensação é de que não haveria condições para voltar porque a campanha contrária tem sido demasiado forte, mas o governo de transição tem feito muitas coisas detestáveis e, também é paradoxal, porque um líder sindical que apoia tal governo tão contrário ao sindicalismo e aos trabalhadores, arca com um custo não apenas eleitoral, mas dentro de sua própria classe. Os dirigentes sindicais, mesmo aqueles que estiveram com a direita e o impeachment, estão recuando, para não parecer que estão favor do aumento da idade mínima para a aposentadoria e assim por diante. É muito violenta e antipopular a intenção de aumentar as horas de trabalho semanais e que se ameace o salário mínimo, que Lula aumentou em quase 200 por cento. Isso tem uma dimensão imensa na vida de grande parte da população. Se a população começar a acreditar que essas são propostas de um governo interino, de emergência, imagine o que poderia ser feito se o governo for ratificado. Isso está criando uma situação difícil, que ainda não fomenta um apoio à uma fórmula Dilma, mas o PT acena com a possibilidade de voltar. A diferença é muito pequena, apenas o voto de seis senadores. Claro, cada senador é um mundo e Dilma não está sozinha. Dificilmente ela negociará em termos de compra e venda de votos, já que vem de um movimento revolucionário e ainda tem uma certa fidelidade à sua origem, mas ao mesmo tempo sabe que é necessário para fazer essas coisas …

– Mas não a agrada.

Nem um pouco, e está é a questão

– Tem-se a impressão de que o Brasil renuncia a um destino histórico de liderança que o Itamaraty vinha cumprindo, após a admissão do país no BRICS.

São 200 anos de luta pela independência da América Latina. Os pró-hispânicos e pró-portugueses lutaram anos para permanecer no poder, quando Portugal e Espanha eram, na verdade, apenas um instrumento da Inglaterra. Esses caras ainda acreditam que a sua sobrevivência como classe dominante depende dessa aliança histórica. E acreditam também que os Estados Unidos da América estão acima de tudo e não sabem ao certo como lidar com o potencial que, por exemplo, tem a China como um importante ator mundial. E isso é grave, porque os chineses negociam coletivamente em grandes projetos e, portanto, de Estado para Estado. Os empresários têm sua importância, mas como auxiliares de um planejamento estatal. Nossa burguesia não acredita nisso. Essa gente é na verdade contra a independência da América Latina.

–Como vê o futuro da região? O triunfo de Mauricio Macri certamente acelerou o golpe no Brasil e avançou a investida contra a Venezuela.

Parece que existe uma fase muito favorável para eles. Entretanto, quando surge uma resistência efetiva, duvido de sua capacidade de controlar a situação. Porque isso tudo está fundamentado em um mundo criado pelos meios de comunicação, pela negação da realidade, com situações psicológicas altamente especializadas, criadas por pessoas que sabem muito bem como transmiti-las para as massas. Na verdade, a ideia é administrar o mundo como se o livre mercado fosse a fonte do crescimento econômico, do desenvolvimento, o que é uma coisa absurda. Não se pode mostrar setor econômico algum que não seja gestado pelo investimento estatal e nenhum processo de enriquecimento que não envolva a transferência de recursos estatais. O que nos leva a uma falsa questão, que a esquerda também deve aprender, de que há de se cortar custos para transferir a essa minoria que gravita basicamente em torno do setor financeiro. No Brasil, pagamos 40% a mais dos gastos do governo, por uma dívida explicitamente criada por razões macroeconômicas.

– Este cenário implica que em algum momento pode haver grandes convulsões. Isso não implicaria situações como as do Oriente Médio?

Em último caso sim, mas não creio que os Estados Unidos querem isso, porque o custo é muito alto em um momento em os EUA reúnem suas tropas para fazer algo que soa incrível, e o dizem claramente: cercar a China. No Oriente Médio, os resultados foram desastrosos. Podem argumentar que lá, a estratégia lá tenha sido a do caos criativo. Se assim for, então o conseguiram.

Entrevista feita por Alberto López Girondo do Tiempo Argentino, em 2 de agosto de 2016

[1]  Fraturamento hidráulico é um método que possibilita a extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo, com grande impacto ambiental, que inclui a contaminação de aquíferos, poluição do ar e sonora, contaminação da superfície etc. (N.T.).

Tradução da Redação do Resistência

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