Opinião

Trump e a política externa dos Estados Unidos

27/02/2017

Atualmente, são muitas as pessoas que, em variados partidos políticos, individualizaram em Donald Trump um elemento de ruptura com a linha política traçada pela anterior administração.

Por Emiliano Alessandroni *

Independentemente das posições retrógradas em matéria de direitos civis que tendem a promover um retrocesso de dezenas de lutas e conquistas (aborto, orientação sexual, liberdade de movimento), a posição que se tem afirmado, mesmo em alguns segmentos da esquerda, é que com o novo presidente os Estados Unidos teriam redimensionado fortemente, quando não eliminado, o seu caráter imperialista, já que o potencial agressivo (ou, ao menos, a operação política) se teria concentrado mais no campo interno do que no externo.

Um consistente setor dos “euro-asiatistas”, fascinado por seu estilo folclórico e pelo radicalismo anti-imigração, abandonou, em um piscar de olhos, os próprios objetivos estratégicos e logo se converteu em “americano-asiatismo”.

Contudo, parece que este novo esquema já saltou pelos ares com a nova agudização da questão ucraniana. Enquanto o exército de Kíev realiza bombardeios noturnos contra zonas residenciais da cidade de Donetsk, assassinando durante o sono dezenas de civis, os Estados Unidos, em vez de denunciar este massacre, este verdadeiro crime de guerra, gritam sobre as “ações agressivas da Rússia” e a “ocupação”, tomando a decisão de prolongar as sanções contra Moscou até que esta decida entregar à Ucrânia o controle da Crimeia, invalidando assim o voto popular expresso no Referendo de 2014.

Ao mesmo tempo, a administração Trump revê a recente política de distensão assumida para com Cuba, promete uma política de punho de ferro contra a ilha, afirma querer manter em operação e reforçar a prisão de Guantânamo e recolocar em funcionamento as prisões secretas da CIA.

Na vertente da Ásia oriental, no que concerne a outro país que continua a definir-se como comunista, a nova administração já fez acordos com Seul que preveem um reforço das relações entre os EUA e a Coreia do Sul. Além das repetidas ameaças à República Popular do norte, as provocações verbais logo se tornam mais concretas com o envio de 300 marines a Pyeongchang, onde se realizaram exercícios militares conjuntos entre o exército estadunidense e o sul-coreano com o objetivo de intimidar a Coreia do Norte e aumentar sua preocupação com a própria sobrevivência e a estabilidade.

A administração Trump também tomou uma dura posição contra a China, sobre a qual o novo presidente afirmou que não está comprometido com a sua unidade territorial, o que equivale a dizer que os Estados Unidos poderiam fomentar a desagregação, coisa que Obama não fez durante os oito anos do seu mandato. Nesse sentido, parece avançar a recente aproximação entre EUA e Taiwan, ocorrida paralelamente às provocações estadunidenses sobre o Mar do Sul da China, onde os EUA continuam a assumir uma atrevida posição tomando um na disputa territorial.

O objetivo é naturalmente o de golpear a China para reduzir seu peso nos planos econômico e político.

Em adição a essas medidas, a administração Trump já se mostrou pronta para a eventualidade de um confronto militar. Pelo menos foi esta a opinião de Stephen Banon (considerado o segundo homem mais poderoso do mundo depois do presidente, estrategista da campanha eleitoral republicana de Trump e hoje principal estrategista da Casa Branca) que há alguns meses deu a seguinte declaração: “Nos próximos cinco ou 10 anos vamos à guerra no Mar do Sul da China, não há dúvida quanto a isto!”.

Deve-se também ter em conta que a política posta em prática por Trump contra os fluxos migratórios não constitui unicamente um problema de ordem interna. Essa política até o momento atraiu o desprezo do presidente da Bolívia, Evo Morales, e do Equador, Rafael Correa, que a estigmatizaram duramente e a denunciaram como um ataque aos seus próprios povos. As restrições dos fluxos não têm um caráter transversal, mas são cuidadosamente selecionadas sobre a base da orientação de política externa. O programa de Washington parece de fato agora voltado para se abrir à imigração política cubana: os dissidentes anticomunistas que queiram deixar a ilha,  contrariamente às pessoas que provenham de outras nações, não encontrarão nenhuma rejeição, mas serão acolhidos de braços abertos pela administração Trump.

Assim, o ingresso aos Estados Unidos está vedado não propriamente aos cidadãos de países muçulmanos: na verdade, não poderão entrar os iraquianos, os sírios e os iranianos, mas poderão, por exemplo, os sauditas.

Estas restrições já danificaram as relações com o Iraque e o Irã, cujas reações não tardaram: aplicando o “princípio da reciprocidade”, agora nenhum cidadão estadunidense poderá entrar naqueles países.

Além disso, nos confrontos com o Irã, a mão dura de Trump não se limita às restrições dos movimentos de seus cidadãos, mas prossegue através de medidas de sanções direcionadas a impedir o desenvolvimento de qualquer programa de defesa capaz de desencorajar as agressões externas ao seu próprio povo. Se o Irã não obedecer às ordens, o novo inquilino da Casa Branca se mostrou disposto à invasão militar, assim como já declarou estar pronto para enviar tropas ao México se este não respeitar a vontade de Washington.

Admindo que o Irã esteja procedendo a um fortalecimento do seu sistema defensivo, por que razão não deveria ter a faculdade de fazê-lo? Acaso alguma vez o Irã já demonstrou vontade, tendência ou projeção expansionista? O máximo que poderia acontecer àquele país, com seu fortalecimento militar, seria deixar de ser o mais aterrorizado com as ameaças do Ocidente.

Trump está bem consciente disso, pois prosseguindo no mesmo complexo e na mesma lógica dos seus antecessores, para os quais os Estados Unidos encarnariam o papel de xerife do mundo, decidiu que o Irã não tem o direito de proceder ao desenvolvimento dos armamentos. Ao contrário, nada diz sobre os próprios EUA que gastam uma quantidade de dinheiro maior do que todo o resto do mundo somado,  e nada exige naturalmente de Israel, possuidor de mais de 350 ogivas nucleares. Ao contrário, a esse país que ainda em 2017 deve definir quais são suas próprias fronteiras, Trump consentiu a expansão colonial desbloqueando o programa de conclusão de três mil novas casas na Cisjordânia. Disse verbalmente, para não correr o risco de antagonizar o aliado, que a extensão dos assentamentos, não constitui um obstáculo nem um estímulo ao processo de paz.

Podemos perguntar: tudo isso constitui um tipo de política que tenta concentrar-se em política interna? Constitui tudo isso uma redução ou uma eliminação do caráter imperialista dos Estados Unidos?

Não há dúvida, naturalmente, de que esteja ocorrendo nos Estados Unidos um enfrentamento feroz entre poderes. Mas esse enfrentamento não é senão a expressão de um “bonapartismo soft”, no qual nenhuma das forças em luta pretende verdadeiramente renunciar à dimensão bonapartista do próprio país, assim como nenhuma tenciona abdicar do  project for the new american century. (projeto para um novo século americano. N do T.).

Um último ponto: o que distinguiu até agora uma boa parte das simpatias e antipatias nutridas nos confrontos de Trump tem sido a dimensão estética. Desprezado por quem vê na sua figura um grosseiro e vulgar fabulador sem respeito nem educação, e admirado por quem vê nele um destruidor da retórica respeitável das elites ou do politically correct (politicamente correto. N.do T.), Trump tem sido tanto odiado como  amado por muitas dessas almas que veem a política como um fato estético, independentemente dos conteúdos que o ethos encerra. Já na metade dos anos 1930, Walter Benjamin tinha observado, entre os diversos traços distintivos do fenômeno do fascismo, precisamente a estetização da política.  

Aquelas almas, portanto, que denunciam em Trump um fascista, em razão das maneiras rudes, vulgares e machistas que assume, não fazem outra coisa senão olhar a política  (mesmo exprimindo uma opinião diferente) precisamente com aquela ótica estética encorajada pelo próprio fascismo. Temos essencialmente, no que concerne ao domínio do político, um obscurecimento dos conteúdos e uma focalização de todas as atenções na forma.

Tudo o que se disse sobre Trump vale naturalmente também para a anterior administração: os bombardeios ordenados por Obama não faziam menos vítimas e não semeavam menos terror porque estavam cercados por uma pose refinada. A elegância, historia docet (a histórica mostra. N. do T.), não constitui algum tipo de garantia contra a perpetração da barbárie.

Contudo, é Trump que detém o controle do mais poderoso país e da mais maciça força imperial de todo o planeta. É, portanto, contra ele e seus mais próximos aliados que é preciso lutar, no momento atual, se se quer começar de modo auspicioso um processo de democratização das relações internacionais, rumo a um mundo em que vigore entre os Estados uma relação de igualdade e não de submissão à monarquia universal única.

 

*Emiliano Alessandroni é doutor em Estudos Interculturais Europeus pela Universidade de Urbino, Itália. Desenvolveu por diversos anos pesquisas de tipo teórico e filosófico na Alemanha e Inglaterra. Colabora atualmente com as cátedras de História da Filosofia Política, História da Filosofia Moderna e Literatura Comparada junto à Universidade de Urbino. Publicou, entre outros livros, Potenza ed Eclissi di un Sistema: Hegel e i fondamenti della trasformazione (Mimesis: Milano/Udine, 2016).

Este artigo foi publicado  originalmente em MicroMega (06/02/2017” e Sinistra.ch: portal suiço de informação progressista, em 07/02/2017. Traduzido do italiano por José Reinaldo Carvalho, editor do Resistência.

 

 

 

 

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