Opinião

A Turquia e o neo-otomanismo

01/03/2016

A Turquia, como emergente potência regional, vem há muito imbuída de enraizar-se nas questões mais quentes da Eurásia. Com sua maior cidade, Istambul, dividida entre a Europa e a Ásia – com o trânsito entre os dois continentes demarcado pelo Bósforo – a geopolítica do governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) é clara. Durante a reunião do Grupo de Trabalho do Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários em Istambul, em 20 e 21 de fevereiro, o secretário do Comitê Central do Partido Comunista, Turquia, Kemal Okuyan, ofereceu informação abrangente sobre a situação no país e na região.

Por Moara Crivelente*

Membro da Otan, a Turquia alia-se de forma umbilical ao imperialismo europeu e estadunidense. Embora não possua seu próprio arsenal nuclear, abriga entre 60 e 70 ogivas nucleares estadunidenses através do programa de Partilha Nuclear da Otan em sua base aérea de Incirlik (operara em conjunto com a Força Aérea dos EUA), assim como Alemanha (que abriga 20 ogivas estadunidenses), Bélgica (10 a 20), Itália (60 a 70) e Holanda (10 a 20). A base aérea de Incirlik fica a menos de 60 quilômetros da costa no Mar Mediterrâneo.

Kemal Okuyan, secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista, Turquia

Kemal Okuyan, secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista, Turquia

Mas Okuyan fez uma avaliação ainda mais abrangente e colocou em contexto a expansão do capital turco após a queda da União Soviética, o papel da Otan e do imperialismo estadunidense, a guinada conservadora no país sob o governo do AKP, o crescente anticomunismo e a militarização regional, em que o país tem papel fundamental. Isso insere-se no que o PC, Turquia, classificou de “neo-otomanismo”, o novo imperialismo turco.

O Bósforo, o canal entre o Mar Negro e o Mar de Mármara, que corta a metrópole de Istambul e a divide entre Ásia e Europa, é considerado de elevada importância estratégica. Além disso, a Turquia tem fronteira com dois países da antiga URSS, Geórgia e Armênia. Os EUA mantiveram, na base naval de Karamürsel – que dava para o Mármara – sua estação para a interceptação de comunicações de rádio russas. De acordo com Okuyan, o país buscou manter-se distante dos conflitos durante a Guerra Fria, retirando da Otan as bases militares na região.

Com a queda da URSS, os Estados Unidos viram-se livres para a aliança com o governo turco e a crescente militarização regional. Os EUA exigiram a abertura do Mar Negro à Otan, estabelecendo uma base militar em Trabzon. A Marinha turca buscou reagir a este projeto, sublinha Okuyan, e também por isso o governo do AKP realiza “operações” contra as Forças Armadas. Em 2007, dois terços dos oficiais de alta patente do Exército estavam detidos.

O AKP, de acordo com Okuyan, de orientação islamita, nasce de um impulso apoiado pela Alemanha, com uma “visão nacional” e um forte movimento religioso. “O partido encoraja o fortalecimento do capital turco e de grandes monopólios, para fortalecer a projeção turca na região e eliminar direitos sociais ou barreiras à privatização no país” diz o secretário. Por isso, “o partido conseguiu o apoio dos monopólios turcos que buscavam novos mercados, dos Estados Unidos e da União Europeia, que pensava que, através do AKP, controlaria o país – especialmente a Alemanha”.

Até então, a Turquia era um Estado burguês e secular, o Exército era forte e o AKP era um partido absolutamente islamita. “Eles usaram o rancor da sociedade contra o Exército e desempenharam um papel extremamente hipócrita na região”, disse Okuyan, até que, em 2002, o AKP assumiu o governo. Foram apoiados pelo grande capital, pelos EUA, pela UE e até mesmo pelo movimento curdo e por grande parte da esquerda turca, exceto o PC. “Desde o início, dissemos que este partido tinha uma missão muito perigosa, que levaria à transição na Turquia. Mas fomos taxados de antidemocráticos e sectários”, recorda o secretário.

Desde o começo, o partido tinha firmes relações com todas as forças islâmicas na região. Até então, o presidente Recep Tayyip Erdoğan dizia estar ao lado do povo palestino, tinha boas relações com o Iraque e relações amistosas até mesmo com o presidente sírio Bashar Al-Assad. Tentou também a aproximação com o Hezbollah, mas não conseguiu levá-la adiante. Suas relações mais próximas, neste âmbito, eram com a Irmandade Muçulmana. No Iraque, apoiava parte da resistência, os grupos sunitas que lutavam contra os Estados Unidos, e tinha controle sobre muitos movimentos islâmicos.

Em 2008, “demo-nos conta de que o AKP iniciaria uma nova abordagem para a política externa”, continua Okuyan. “Nosso partido usou o termo ‘neo-otomanismo’: a Turquia desempenharia um importante papel (pelos interesses) dos Estados Unidos e pelos seus próprios e este seria um papel horrendo, num processo que deveríamos deter. Mas ninguém acreditou”.

“Erdogan, enquanto barganhava com os Estados Unidos pelo projeto do Grande Oriente Médio, insistiu em que os EUA deveriam reorganizar seus aliados e incluir a Irmandade Muçulmana na aliança. Todos sabemos que a Primavera Árabe tem raízes na insatisfação do povo com seus governos, mas isso não é tão simples. Sabemos desde o início que ela foi manipulada” e a Turquia do AKP desempenhou um papel importante neste cenário. Mas na Síria, os planos de Erdogan fracassaram.

“Já não somos um país secular – podemos sê-lo no papel, mas não na prática” diz Okuyan. Na educação, na política, entre outros níveis da vida social e das diferentes regiões, o conservadorismo tem se enraizado. No mesmo processo, “o partido AKP abriu rotas para o capital turco, dentro e fora do país, e transformou-o em um Estado islâmico”.

“Erdogan enfrenta problemas na Síria, mas seus maiores problemas vêm de dentro. Aquelas partes da Turquia, desde a Anatólia até o leste e as áreas curdas, no sudeste, são áreas extremamente conservadoras. Nem mesmo os sociais-democratas angariam mais do que 1% dos votos em algumas cidades. Em primeiro fica o AKP, em segundo, um partido fascista, em terceiro, outro partido fascista. Nas grandes cidades, há subúrbios radicalizados no conservadorismo, embora sejamos uma sociedade jovem (em média, 28 anos de idade) e educada (já que a juventude é incentivada a ir para as universidades, para reduzir a taxa de desemprego e para gerar mão-de-obra qualificada, mas barata)”. Assim sendo, nos centros industrializados e desenvolvidos, ainda há uma classe trabalhadora jovem e moderna, aberta às ideias progressistas e que resiste à islamização. Em 2013, quando Istambul foi palco de protestos massivos, com foco na praça de Taksim, a polícia estimou que 1,2 milhão de pessoas se reuniram na área no primeiro dia, recorda Okuyan. “Isso foi uma verdadeira derrota para Erdogan. Todos se deram conta de que ele não pode levar a cabo a islamização; há uma jovem classe trabalhadora e um movimento muito forte de mulheres, que lutarão por sua liberdade”.

Ao enfrentar o grande levante em 2013, e com grandes problemas na política externa, Erdogan criou uma massa de apoio: 50% da população o apoia, sobretudo nas áreas subdesenvolvidas, com uma população conservadora. “Há, então, uma contradição, um conflito ideológico e político real, na Turquia entre as partes modernas e as conservadoras na sociedade” avalia o secretário.

Okuyan também avaliou a questão curda, desde a guerra civil eclodida nos anos 1980 até a divisão entre os curdos progressistas e os conservadores, com a problematização da questão nacional e a desagregação da população. Embora o “Curdistão” fique no leste da Turquia (atravessando a fronteira com a Síria, o Iraque e o Irã), em território turco, a maior parte da população curda vive, em realidade, no Oeste, na região de Istambul, integrada à classe trabalhadora da metrópole. Mas a questão curda será abordada pelo Resistência na próxima matéria.

*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro da Comissão de Relações Internacionais da Secretaria de Política e Relações Internacionais do PCdoB

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