Relações China-EUA

Comentários sobre os movimentos da diplomacia chinesa e os impactos para a política externa dos Estados Unidos 

10/04/2023

Por Rita Coitinho (*) no OPEU

No dia 21 de março, teve lugar em Moscou a reunião entre as duas autoridades máximas da Rússia e da China. Esses encontros entre os mandatários dos dois países vizinhos têm sido frequentes nos últimos anos e vêm assumindo grande peso no cenário internacional, especialmente desde o ocorrido em 11 de setembro de 2020. Nessa data, ambos os países lançaram uma declaração conjunta que conclamava a comunidade internacional a “reforçar a interação, aprofundar a compreensão mútua, enfrentar conjuntamente os desafios à estabilidade política e à recuperação econômica mundial” (falamos disso há alguns anos, aqui).

Do encontro deste ano resultou um documento que, em linhas gerais, reforça aqueles objetivos já expostos em 2020 e anuncia novos passos para a consolidação do que a diplomacia chinesa chama de “pilares” da reforma da ordem mundial. Muito do que o documento declara está, de certa forma, expresso nas ações concretas da China nos últimos anos para deslocar o centro gravitacional da ordem internacional e provocar uma dispersão do poder, na direção de uma “ordem multipolar”. São exemplos dessas ações os projetos vinculados à iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, na formação do BRICS (e sua possível expansão) e na Organização de Cooperação de Xangai, que já vem discutindo cooperação mútua com a União Econômica da Eurásia.

O evento se deu poucos dias após o anúncio da expedição, pelo Tribunal PenaI Internacional (TPI), de uma ordem de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, e do lançamento, pelos chineses, de uma proposta de 12 pontos para o fim do conflito entre Rússia e Ucrânia. Na atual conjuntura, amplificam-se os esforços dos países da OTAN para envio de armamentos e insumos – incluindo urânio empobrecido – para a Ucrânia, com a ampliação dos esforços para isolar Moscou diplomaticamente, enquanto se prepara uma ofensiva militar de larga escala a partir da Ucrânia.

Os anúncios feitos nos discursos dos dois chefes de Estado, bem como o documento resultante do encontro, têm forte carga simbólica: reforçam a parceria das duas nações, em um momento em que o chamado “Ocidente” – denominação que cada vez mais se restringe aos membros da OTAN – busca isolar a Rússia por todos os meios, intensificando sanções econômicas e diplomáticas. O movimento chinês evidencia que Pequim, ciente da intenção da diplomacia estadunidense de tornar insustentável qualquer articulação com Moscou, não pretende manter nenhuma aparência de neutralidade. Cerca de um mês antes, a Chancelaria chinesa já havia apresentado o documento A hegemonia dos EUA e os seus perigos, no qual demonstra conhecer – e refutar – a estratégia estadunidense de dividir potenciais alianças não-alinhadas à sua política.

Como mostram Cortinhas e Reis no último Panorama EUA, ao tratarem da nova doutrina de defesa dos EUA, “em termos conceituais, uma das noções que têm buscado organizar o debate em torno da inserção internacional dos EUA na atualidade é a denominada ‘estratégia de cunha’ (wedge strategy). Trata-se de uma estratégia que, diferentemente da balança de poder, não está focada somente em uma potência adversária. O conceito se refere à atuação dos EUA quando há dois, ou mais, concorrentes relevantes, visando a impedir que surja uma aliança entre eles. Colocar uma cunha separando os adversários, nesse sentido, maximizaria a capacidade estadunidense de atuação”.

China e Rússia já vêm trabalhando conjuntamente com o horizonte dessa nova orientação dos EUA, buscando organizar um cenário de cooperação que permita a construção de uma aliança duradoura e estratégica orientada para a reordenação da ordem internacional. Abaixo, selecionamos alguns dos pontos-chave do documento, para, em seguida, abordar o Fórum Econômico Brasil-China.

Alguns destaques da declaração conjunta Rússia-China

  1. Relações bilaterais e promoção do multilateralismo

Os dois lados enfatizam que a consolidação e o estreitamento da Parceria Estratégica Abrangente China-Rússia orientada para uma nova era é uma escolha estratégica feita pelos dois lados com base em suas respectivas realidades nacionais, alinhada aos interesses fundamentais dos dois países e de seus povos e com as tendências de desenvolvimento dos novos tempos, e não está sujeita a influências externas”.

O documento lista, assim, alguns eixos para essa diretriz: relações pautadas pelo consenso e dirigidas por seus chefes de Estado; suporte mútuo em interesses vitais como soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento; destaque para o princípio dos benefícios mútuos no aprofundamento e na expansão da cooperação e nos processos de modernização para que se alcancem objetivos comuns de desenvolvimento e prosperidade para os povos dos dois países; promoção do entendimento mútuo e da amizade entre os dois povos, de modo a consolidar na opinião pública das duas nações a ideia de amizade entre os dois países; avanços na multipolarização do mundo, na globalização econômica, na democratização das relações internacionais e no desenvolvimento da governança global.

“Os dois lados destacam que os países têm diferentes histórias, culturas e condições nacionais, e cada um tem o direito de escolher seu padrão de desenvolvimento. Não existe ‘democracia’ que seja superior às outras. Os dois lados se opõem à imposição de valores, ao uso da ideologia para traçar limites, opõem-se à narrativa hipócrita da chamada ‘democracia contra o autoritarismo’ e se opõem ao uso da democracia e da liberdade como pretexto e ferramenta política para pressionar outros países e suas políticas. A Rússia atribui grande importância à Iniciativa de Civilização Global proposta pela China”.

A Rússia apoia a China na realização do modelo chinês. A China apoia a Rússia na realização de seus objetivos de desenvolvimento nacional antes de 2030. Ambos os lados se opõem a forças externas que interferem nos assuntos internos. O lado russo reafirma sua adesão ao princípio de Uma Só China, reconhece Taiwan como parte inalienável do território da China, opõe-se a qualquer forma de ‘independência de Taiwan’ e apoia firmemente as medidas da China para salvaguardar sua soberania e integridade territorial”.

Os dois lados concordaram em fortalecer os intercâmbios em direito internacional e experiência legislativa e a fornecer garantias legais para o desenvolvimento das relações sino-russas e da cooperação externa entre os dois países”.

Os dois lados fortalecerão a coordenação, implementarão políticas precisas e procederão com uma perspectiva estratégica para melhorar efetivamente o nível de cooperação prática entre os dois países em vários campos, de modo a consolidar a base material das relações bilaterais e beneficiar os dois povos”.

Os dois lados estabelecerão uma parceria energética mais estreita, apoiarão empresas dos dois lados na promoção de projetos de cooperação energética em petróleo e gás, carvão, eletricidade e energia nuclear e promoverão a implementação de iniciativas que ajudem a reduzir as emissões de gases de efeito estufa, incluindo o uso de energia de baixa emissão e energia renovável. As duas partes manterão em conjunto a segurança energética internacional, incluindo a infraestrutura transfronteiriça chave, manterão a estabilidade da cadeia de abastecimento e da cadeia da indústria de produtos energéticos, promoverão uma transição energética justa e o desenvolvimento de baixo carbono com base no princípio da neutralidade tecnológica e contribuirão conjuntamente para o desenvolvimento saudável e estável de longo prazo do mercado global de energia”.

Os dois lados continuarão a realizar cooperação prática na aviação civil, fabricação de automóveis, construção naval, metalurgia e outros campos de interesse comum”.

A Rússia aprecia muito o sucesso da China como anfitriã da 14ª Cúpula do BRICS. Os dois lados estão dispostos a trabalhar em conjunto com outros membros do BRICS para implementar o consenso alcançado nas reuniões anteriores dos líderes do BRICS, aprofundar a cooperação prática em vários campos, promover ativamente discussões sobre a expansão dos países do BRICS e do Novo Banco de Desenvolvimento e realizar ativamente a cooperação no âmbito BRICS+”. Nesse ponto, a declaração enfatiza que os diálogos que se desenvolvem a partir do BRICS, extravasando para sua “periferia”, são fundamentais para a salvaguarda dos interesses comuns dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento.

II – Segurança global e armas nucleares

Os dois lados enfatizam a importância da ‘Declaração Conjunta dos Líderes dos Cinco Estados com Armas Nucleares sobre a Prevenção da Guerra Nuclear e Evitar uma Corrida Armamentista’ e reafirmam que ‘a guerra nuclear não pode ser vencida’. Os dois lados pedem a todos os signatários da declaração conjunta que cumpram os princípios da declaração, reduzam efetivamente o risco de guerra nuclear e evitem qualquer conflito armado entre Estados com armas nucleares. No contexto da deterioração das relações entre os Estados com armas nucleares, as medidas para reduzir os riscos estratégicos devem ser organicamente integradas aos esforços gerais para aliviar as tensões, construir relações mais construtivas e minimizar os conflitos no campo da segurança. Todos os Estados com armas nucleares devem se abster de implantar armas nucleares no exterior e retirar as armas nucleares implantadas no exterior”.

As duas partes reafirmam que o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares é a pedra angular do sistema internacional de desarmamento e não-proliferação nuclear. Os dois lados reafirmam seu compromisso com o Tratado e continuarão a trabalhar juntos para mantê-lo e fortalecê-lo e para manter a paz e a segurança mundiais”.

Outros temas relacionados à segurança e às armas nucleares foram destacados, como as preocupações dos dois países com o tratado entre EUA, Reino Unido e Austrália (AUKUS, na sigla em inglês), exortando os três países a cumprirem metas e acordos dos tratados de não-proliferação de armas nucleares. Ainda, a declaração chama ao respeito aos princípios da Carta da ONU e do Direito Internacional. Nesse ponto, destacou-se que “os dois lados se opõem a qualquer país, ou grupo de países, que prejudique os legítimos interesses de segurança de outros países em busca de vantagens militares, políticas e outras”, conclamando a que a OTAN se atenha ao seu caráter regional e defensivo, respeitando a soberania, a segurança e as peculiaridades históricas e culturais das outras nações, em uma clara alusão à participação da OTAN nas articulações que levaram às tensões entre Rússia e Ucrânia.

O documento traz, também, a visão de Moscou e Pequim sobre outros temas internacionais, envolvendo outros países e continentes que não abordaremos aqui em razão do espaço, mas que podem ser consultados nos endereços de referência.

Em síntese, trata-se de um documento diplomático abrangente e de grande relevância que demonstra a disposição dos dois governos para assumirem um papel político global e duradouro, e não mais apenas uma concertação e caráter imediato e regional, em continuidade com o que já vinha sendo desenhado nas declarações dos anos anteriores. Para o analista Chris Devonshire-Ellis, do China Briefing, o resultado dessa articulação China-Rússia pode ser assim resumido:

  • Aumento dos esforços diplomáticos e comerciais da China e da Rússia na África, Oriente Médio e América do Sul;
  • A emergência gradual de um bloco comercial mútuo para acomodá-los;
  • Aumento da pressão diplomática e política sobre as instituições globais existentes, sustentada pelo apoio das nações em desenvolvimento em termos de reformas;
  • O surgimento de vários tipos de sistemas de liquidação financeira como alternativa ao SWIFT (sistema de pagamentos internacionais controlado por instituições bancárias estadunidenses e europeias, sediado pelo Banco Nacional da Bélgica. Até o presente, o SWIFT vinha funcionando como principal meio de compensações para transações internacionais).
  • Desenvolvimento contínuo dos recursos energéticos russos que fluem para o leste e sudeste, sobretudo, para a ASEAN e a Índia;
  • O reforço da coordenação com a energia do Médio Oriente desempenha o seu papel como hub regional de energia, com especial atenção para os abastecimentos de África;
  • O aumento do comércio e da ajuda direcionados a nações influentes, porém mais pobres, na Ásia e na África.

O novo sistema de pagamentos Brasil-China

O seminário econômico ocorrido em Pequim na última semana de março terminou com o anúncio, pelo Ministério da Fazenda brasileiro, de um acordo entre os bancos centrais do Brasil e da China: a partir de julho de 2023, os bancos brasileiros poderão passar a usar o sistema de pagamentos da China em moeda local. O acordo foi amplamente coberto pela imprensa brasileira.

A notícia da semana (Fonte: Geopolitical Monitor)

Esta talvez seja a notícia mais importante da semana que passou, se pensarmos nos seus efeitos de médio e longo prazo: a possibilidade concreta de uma paulatina independência em relação à moeda estadunidense, central para o comércio internacional desde o estabelecimento da ordem econômica e financeira mundial em Bretton Woods, agora não mais restrita à região euroasiática – pois esse sistema de pagamentos em moedas locais já estava em uso nas operações entre China e alguns países da região, como a Rússia e o Irã.

Desde 2008, quando a reforma das instituições financeiras entrou definitivamente na pauta internacional – levando inclusive à articulação formal do BRICS e à idealização de um banco de investimentos do bloco –, a China persegue o objetivo de construir uma alternativa ao dólar, que inicialmente foi idealizada como uma “cesta de moedas” nacionais. Este também vinha sendo um objetivo perseguido pelo Brasil (com uma breve interrupção entre 2016 e 2022): Brasil e Argentina já praticam, desde 2008, no âmbito do MERCOSUL, um sistema de pagamentos em moedas locais. Isso torna o comércio entre os dois países autônomo em relação às flutuações do dólar, embora suas economias sigam ainda muito dependentes da moeda estadunidense, precisamente em razão de o mercado internacional ser majoritariamente regido pelo dólar.

O acordo entre China e Brasil é mais um passo na globalização do método alternativo de pagamentos em moedas locais, abrangendo dois países de dimensões continentais e de importância global. Isso em um momento em que o novo governo brasileiro indica, em um ato de grande simbolismo, o nome de Dilma Roussef para o Novo Banco de Desenvolvimento (alcunhado de “Banco dos Brics”) e que se fala em expansão do BRICS – possivelmente já com a integração da Argentina ao bloco.

Efeitos imediatos para a política externa dos EUA

Ambos os encontros se inserem em uma agenda global de questionamento da hegemonia dos Estados Unidos, especialmente no âmbito político e econômico. De um lado, com o conflito entre Rússia e Ucrânia, os EUA vêm tendo ganhos relativos à coesão do bloco europeu em torno da agenda estadunidense, coordenada via OTAN. Isso tem ampliado sua influência no cenário europeu com uma intensidade que não se assistia desde o Plano Marshall, no pós-Segunda Guerra Mundial, e com ganhos econômicos extraordinários no mercado de armamentos para as empresas estadunidenses.

Do outro, o “resto do mundo” – leia-se: grande parte dos países da Ásia, África e América Latina – caminha aceleradamente para outro tipo de concertação internacional, com a ampliação de acordos, encontros, declarações conjuntas e iniciativas concretas no âmbito político e econômico. Com isso, além de se ampliar enormemente o fluxo de investimentos entre os países desses continentes e os acordos comerciais, nos últimos anos, também se multiplicam as iniciativas no âmbito financeiro, com sistemas de pagamentos locais que enfraquecem a posição do dólar no cenário global, como este mais recente entre Brasil e China.

Todas essas mudanças que ocorrem em ritmo acelerado colocam para os EUA novos desafios e cenários, até então inesperados. Sua nova política de defesa procura apresentar uma resposta ao se debruçar, fundamentalmente, em mecanismos para impedir a consolidação de novos blocos e alianças regionais que possam vir a questionar a hegemonia estadunidense.

A última “cúpula pela democracia”, realizada em 29 de março passado, uma iniciativa do governo dos EUA, teve a participação de apenas 76 países e sequer pôde contar com a adesão de todos eles à sua declaração, que trazia duras críticas à Rússia. O Brasil se recusou a assinar o documento, afirmando que a defesa da causa da democracia não pode servir à promoção de divisões – em uma alusão ao surgimento de uma “nova Guerra Fria” entre EUA, de um lado, Rússia e China, de outro – e que a luta pela democracia deve incluir também a promoção do desenvolvimento econômico e a inclusão social.

Os sinais que emanam do antigo Terceiro Mundo são claros: os países emergentes desejam o desenvolvimento e a soberania nacional. A era da hegemonia estadunidense ainda não chegou ao fim – do contrário, não seria objeto permanente de preocupação –, mas certamente vem atravessando sua era de maior contestação.

(*)Rita Coitinho é cientista social, pesquisadora do INCT-INEU, doutora em Geografia (UFSC) e doutoranda em Ciência Política. Autora de Entre duas Américas – EUA ou América Latina? (Editora Insular, 2019). Contato: Email: ritamcoitinho@gmail.com. Integra a Direção Nacional do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz

* Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 2 abr. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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