China

Das mentiras que se leem por aí: a China é uma ditadura?

01/10/2018

Por Rita Coitinho (*)

Estive por duas semanas na China, atendendo ao gentil convite do Comitê do Povo Chinês pela Paz e o Desarmamento dirigido ao Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta Pela Paz (CEBRAPAZ).

Foram dias de espanto, maravilha, quebra de paradigmas e muito aprendizado. Creio que precisarei de alguns meses ou anos para compreender tudo o que vi e aprendi naqueles dias, esforço de pensamento ao qual será necessário somar o estudo aprofundado deste impressionante fenômeno social que é a construção do socialismo com características chinesas.

Dentre os muitos temas que foram abordados pelos mestres que nos acompanharam nessa visita, segui com particular interesse as explanações acerca do sistema político chinês. É certo que eu já não acreditava na velha cantilena de que a China é uma ditadura, tão propagada pelos meios de comunicação monopolísticos e por um bom punhado de “entendidos”, inclusive cientistas políticos e sociólogos do “mundo ocidental”. Explicar o sucesso da ação do Estado chinês no planejamento econômico nacional pela simples fórmula de “Estado autoritário” tem sido, há décadas, a explicação preguiçosa de boa parte do que se produz nas academias a respeito da China.

Na falta de vontade de reconhecer a superioridade do planejamento socialista, que alavancou a economia chinesa a um ritmo de crescimento que ultrapassa todas as grandes economias capitalistas do planeta – em uma nação que era feudal e dividida entre potências imperialistas há pouco mais de 70 anos -, evoca-se o autoritarismo de Estado e o sufocamento do debate político e econômico como meios de se garantir a estabilidade política necessária ao planejamento – como se aplacar os dissensos sociais fosse a fórmula do sucesso. Por essa fórmula preguiçosa, portanto, todos os governos autoritários deveriam obter sucesso econômico. Sabe-se (e nós latino-americanos o sabemos bem!) que isso não condiz com a realidade.

O socialismo com características chinesas vem sendo perseguido pelo povo chinês sob a liderança do Partido Comunista, em um sistema político complexo e extremamente capilarizado que compreende a existência de nove partidos políticos. Além do PCCh, atuam o Comitê Revolucionário do Partido Komintang na China; a Liga Democrática; a Associação da Construção Democrática; a Associação Chinesa pela Democracia; o Partido Democrático de Camponeses e Operários; o Partido Zhi Gong da China; a Sociedade Jiusam (Sociedade Três de Setembro) e a Liga pela Democracia e Autonomia de Taiwan. Desde a vitória da revolução de 1949, os partidos assinaram o compromisso em torno de um programa mínimo, em torno do qual comprometeram-se com a unidade e o trabalho em um regime de coexistência duradoura e supervisão mútua.

O mecanismo legislativo chinês é formado pela Assembleia Popular Nacional (APN), que é a autoridade suprema do país e pela Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. A Assembleia Popular Nacional elabora, modifica e executa a Constituição do país; verifica, modifica e aprova o orçamento; supervisiona o governo, fiscaliza a aplicação dos recursos e também fiscaliza a ação do Tribunal Popular Soberano.

A APN é composta por 2.980 deputados mais 35 delegados regionais (um para cada uma das 34 regiões e um representante das Forças Armadas). Não há salário para a maioria dos deputados, que devem seguir exercendo suas profissões (professor, operário, camponês, engenheiro etc.) normalmente, afastando-se temporariamente para as sessões da Assembleia, que ocorrem em março, depois da qual retornam ao trabalho. Para formar a Assembleia Nacional são eleitos 2,67 milhões de deputados, em cinco níveis. As eleições não são disputadas entre os partidos, mas entre os próprios cidadãos em suas comunidades. Cada 10 eleitores podem indicar um representante para o primeiro nível eleitoral, onde os mais votados passam a compor a lista para o segundo nível e assim sucessivamente, saindo do nível comunitário para os níveis seguintes: distrital, de províncias, regional e nacional. A Assembleia elege 159 deputados para participar de 10 comissões permanentes que têm a atribuição de implementar as políticas aprovadas nas sessões. A ANP reúne-se, simbolicamente, sempre no mês de março, porque é o mês da primavera, época de semear.

O outro mecanismo, a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), também é formado em cinco níveis. Sua primeira reunião ocorreu em 1949, quando aprovou-se o Programa Comum, segundo o qual os partidos não comunistas aceitavam a direção política do PCCh e todos comprometiam-se com a construção de um país justo, soberano e moderno. A CCPPC promove consultas políticas, supervisão mútua, acompanhamento da implementação do programa político e a composição e participação dos partidos e representantes do povo no governo.

Chama a atenção, ainda, a presença do PCCh em todos os níveis da sociedade. As vilas, as fábricas, as empresas, todas contam com uma sala de reuniões da célula local do partido. Além disso, a Constituição obriga as empresas a garantir o espaço de organização sindical dos trabalhadores. A Liga da Juventude Comunista da China conta com quase 100 milhões de membros, distribuídos tanto no sistema educacional secundário e superior quanto nos espaços de trabalho e zonas rurais.

Ao contrário do que se procura divulgar fora da China, o sistema político implantado após a revolução de 1949, com as modificações que sofreu ao longo dos anos, especialmente nos anos 1970, com a mudança no estatuto do PCCh – que agregou à função de “vanguarda do proletariado” também a de “representante de toda a nação” -, envolve a participação popular em todos os níveis, conferindo ao governo e às decisões emanadas da Assembleia Nacional um alto grau de legitimidade. Esta parece ser a melhor explicação para a adesão da maioria do povo chinês ao sistema político vigente, ao invés das complicadas fórmulas de “país com tradição autoritária e feudal” que teria substituído o respeito ao imperador pelo respeito do Partido Comunista. Um argumento falso e logicamente frágil, basta pensar que se o respeito ao imperador fosse tão forte e inquebrantável a violenta revolução nacionalista de 1911, que derrubou a dinastia Manchu e, depois, a revolução de 1949, que levou os comunistas ao poder, não teriam sido possíveis. Ambos os movimentos políticos nasceram e puderam se consolidar pela adesão massiva do povo chinês. Os setenta anos de caminho para o socialismo, por sua vez, com todas as dificuldades que se enfrentou e que ainda precisam ser enfrentadas, tampouco podem ser entendidos como obra de um petit comitê desconectado de seu povo. A adesão dos chineses às transformações sociais, políticas e econômicas é, sem sombra de dúvida, fator central dos sucessos obtidos até aqui e deve-se, antes de mais nada, à sua efetiva participação nos processos políticos.

(*) Socióloga, Doutora em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.

Resistência, com Desacato

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