Opinião

Impeachment, instrumento do Golpe contra a Democracia

07/06/2016

Golpe e censura

O processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff foi qualificado como “golpe” e a aplicação desse qualificativo suscitou questionamento até ao nível do STF, no seguimento de uma ação movida por parlamentares (do PSDB, do DEM e do PP), intimando a Presidente Dilma Rousseff a pronunciar-se e a justificar o uso daquela expressão.

Alexandre Weffort, de Portugal para o Resistência

Posteriormente, o advogado José Eduardo Cardozo reagiu a uma tentativa censória por parte do AGU do governo interino realizada através de uma “sindicância investigativa” pelo uso do termo “golpe”. Na reação, diz Cardozo, ex-ministro e defensor de Dilma, citando vários dicionários onde o termo se encontra definido:

“Frequentemente esta expressão é utilizada, por cientistas políticos ou mesmo por juristas, em diferentes países (…), para definirem as situações em que ocorre a deposição, por meios inadmitidos pela ordem jurídica, de um governo legítimo. Golpe de Estado é a expressão que está dicionarizada como a mudança violenta ou ilegal de governo (Oxford Concise Dictionary); subversão da ordem constitucional (Aurélio); violação deliberada das formas constitucionais por um governo, assembleia, ou um grupo de pessoas que detém a autoridade (Larousse); ou a súbita e forçada destituição de um governo (Webster’s New Twenty Century Dictionary). Reduzida a termos mais simples, golpe de Estado configura a substituição de um poder do Estado por outro, por métodos não constitucionais, com ou sem uso de violência física”[1]

Afirma, ainda, Cardozo: o atual AGU “age como se fosse um autêntico inquisidor medieval à caça daqueles que não professam a sua fé, como um Torquemada dos novos tempos. Tempos de golpes sem armas, tempos de intolerância e de policiamento da liberdade de pensamento e de expressão. Tempos em que o sustentar uma tese na defesa de alguém pode ser tipificado como crime”[2].

Do “golpe”, produto da articulação de interesses e forças políticas da direita, chegamos à manifestação da essência ideológica da direita: a prepotência totalitária, o autoritarismo. O ato golpista veio, assim, criar as condições políticas para o Estado procurar a censura à liberdade de expressão, a começar pelo uso do termo “golpe”.

Encruzilhada

Em debate acerca do rito do impeachment produzido no plenário do STF, o seu atual Presidente Lewandowski assinalava a gravidade do momento e lembrava que impedimento

“tem origens até numa expressão latina, antiga, que vem de impedicare, que eram aqueles ferros que se colocavam nos prisioneiros para impedir que a pessoa caminhasse. Então, do que se trata aqui é exatamente impedir a ação de um Presidente da República eleito por milhões de votos”[3].

O impeachment é já, de sua natureza, uma violência sobre a democracia. O debate, produzido no STF para a definição do rito que deve regular o processo, evidenciou não apenas a consciência dessa natureza como da incompleição do próprio instrumental jurídico que regula o processo[4], tanto no que vai fixado no texto constitucional como no da legislação aplicável.

A metodologia jurídica utilizada pelo STF firmou o pé em três momentos históricos: 1950, antecedendo o presidencialismo constitucional de Getúlio Vargas; 1988, da Constituição Federal gerada no processo de redemocratização; 1992, da consolidação do rito do impeachment, pela sua aplicação a Collor de Mello. Sendo momentos específicos e marcantes, que diferenciam épocas da história política brasileira, revelam também algumas interligações.

1950 foi o ano da criação da Petrobras e, também, da eleição de Getúlio, que toma posse em 1951 e, em 1954, “deixa a vida para entrar na História”[5] na decorrência da reação conservadora ao seu governo, e de um processo em que a “mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos, numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa”[6], afirmando: “Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas”. Ciente da natureza do processo, opta pelo suicídio, dizendo: “… preferi ir prestar contas ao Senhor, não dos crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes”.

A pressão conservadora que levou ao suicídio de Getúlio Vargas eclodiu depois, no Golpe de 1964, impondo ao Brasil a ditadura militar até 1985. A Constituição de 1988 foi um passo na redemocratização, mas os interesses em jogo à época de Getúlio continuaram presentes – a Petrobras surge hoje colocada no centro da crise brasileira, tanto por razões geoestratégicas, como por nela se ter instalado um poderoso sistema de corrupção que corrói o sistema partidário.

A pressão contra Dilma Rousseff segue passos semelhantes, mas com particularidades próprias: a criação das condições para a concretização do “golpe” – como ensina Foucault – não será alheia a alguns traços da estratégia política seguida pelo governo de Dilma (a começar pela aceitação da presença de alguém como Temer no lugar de “vice”). Já se disse que muitos erros foram cometidos, mas também já se constatou à evidência que não são os erros que o governo Temer procura eliminar: são precisamente os muitos acertos da última década, acertos dos Governos Lula e Dilma.

A análise do processo não exclui a pertinência de uma perspectiva crítica. Mas, embora a postura de apenas criticar se possa revelar cômoda, ela será tão improdutiva quanto nociva (seja ela feita com alguma base objetiva – mas sem a necessária capacidade orgânica e de mobilização, seja realizada na afirmação abstrata de receitas teóricas – mas sem a correspondente adequação à realidade objetiva).

A encruzilhada atual da sociedade brasileira traduz-se na contradição que se manifesta no caminho de emancipação social e cultural – que teve significativo desenvolvimento com os governos de Lula e Dilma – condição necessária à formação de uma consciência de cidadania progressista majoritária (em termos de participação e de representação política), caminhar que se faz no contexto de relações econômicas e de classe, numa sociedade que se afirma como potência emergente num quadro global capitalista.

Impedicare

O processo inicia-se no âmbito político. O Judiciário não produz juízo de mérito, nem intervém, exceção feita à apreciação da forma dos atos do próprio rito. A Assembleia desenvolve o primeiro passo, aceitando a denúncia, até à votação da autorização para a abertura da instrução do processo no Senado. Determina um rito em que, até esta fase, não haverá defesa porque não há acusado (embora a acusação se tenha feito na mídia e seja em consequência da opinião pública que ela se afirmou como supostamente válida).

No Senado é dado o passo de aceitação da acusação e a Presidente, em consequência, é suspensa do exercício das suas funções. O impedicare vai já posto, preventiva e abusivamente. Até ao momento, não se produziu a necessária fiscalização sobre os atos políticos (da Câmara ou do Senado), nomeadamente, no sentido de garantir que o processo não se desenrola determinado por quezília contra a Presidente eleita.

Dizer que o processo se desenvolve num âmbito político não significa aceitar que possa ser mantido na inobservância do critério jurídico. Significa, sim, que a ação política deve munir-se da necessária competência jurídica, embora tenha, sobre a matéria em apreço, uma maior largueza de movimentos, algo que o Judicial não exercita.

A dimensão política contextualizará necessariamente o impacto das deliberações, mas estas deverão observar coerência também jurídica (em forma e substância). Por outro lado, a legitimidade da ação política deve buscar-se na própria lógica de legitimação do poder que, em democracia (e, também no quadro constitucional brasileiro), resulta da vontade popular expressa através do voto.

O rumo do golpe

A vontade popular, expressa através do voto, deveria ser também o critério de legitimação da ação governativa a realizar transitoriamente por um Presidente interino. Mas, Temer opta por desconhecer a regra de legitimidade do voto que o elegeu enquanto vice-presidente e, assim que é empossado, inicia uma brusca mudança de rumo. Com a ação de Temer, o impedimento preventivo da Presidente Dilma Rousseff resultará não apenas num impedicare imposto à pessoa da Presidente, mas aos milhões de brasileiros que nela votaram (porque votaram nela e no projeto político que ela representa).

Seguindo um rumo contrário ao sentido do voto dos 54 milhões de brasileiros que sufragaram Dilma (e a ele como candidato a “vice”), Temer produz, afinal, uma ‘mudança violenta de governo’, através da ‘súbita destituição de um governo’ e sua substituição por outro, concretizando uma radical inversão no rumo político, demonstrando pela prática a tese do golpe que depois pretende negar e esconder.

Os dados mais recentes vindos a público (gravações e delações que passam a integrar o manancial de elementos jurídicos de processos judiciais) indiciam tratar-se de plano arquitetado nas cúpulas partidárias, com interligação a interesses vários, nomeadamente, aos processos de corrupção atualmente investigados pelas autoridades policiais e PGR.

No Senado, os partidos do governo Temer procuram impedir a junção desses dados novos no rol dos elementos de prova da defesa, com o argumento de não trazerem relação com o processo. Na verdade, esses elementos revelam maior correlação com a gênese do processo que os alegados crimes de responsabilidade cometidos por Dilma Rousseff.

Mesmo a um nível mais comezinho, da gestão de recursos (como no caso das limitações impostas a Dilma em deslocação nos aviões da FAB ou, ainda, no corte pontual de acesso ao próprio abastecimento alimentar do Palácio da Alvorada), afirmou-se a lógica do impedicare em atos que ferem o elementar da dignidade humana, aproximando o “golpe” do ato de violência até física. O impedicare – os grilhões referidos pelo Presidente do STF, Ricardo Lewandowski – foi aplicado à própria Democracia, não em sentido figurado, mas na essência do Estado de Direito.

O “golpe” em curso é um ato “quase constitucional”. Bastou, para garantir eficácia, um breve fechar de olhos aos atropelos jurídicos, adiando o conhecimento ou omitindo habilmente (dizendo “não vejo nada” ou a negando a ação competente na aplicação do direito; vendo e “nada dizendo” ou, mesmo, recusando ouvir, quando o protesto é manifesto).

A omissão ficou patente em várias instâncias institucionais, mas não nas ruas. O movimento de protesto, promovido pelas forças mais progressistas e empenhadas (partidos e movimentos sociais), afirma-se na defesa das conquistas sociais da última década, combatendo o impeachment de Dilma Rousseff, que significa um impedimento ao desenvolvimento social e cultural do Brasil num caminho progressista.

Em 1954, Getúlio Vargas pôs termo à vida acreditando que “… a resposta do povo virá mais tarde”. Hoje, com Dilma, o movimento popular no Brasil se afirma e diz: “Fora Temer!”.

Alicerça-se na sociedade brasileira o sentido de participação que legitima o poder democrático, na ação de massas nas ruas e no reconhecimento da necessidade de se dar a voz decisiva ao povo brasileiro, através de um plebiscito por eleições diretas.

Notas

[1] Ver http://jota.uol.com.br/representacao-de-jose-eduardo-cardozo-contra-fabio-medina-osorio.

[2] Idem.

[3] Ver https://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/, documento n.º 10442164.

[4] No sentido de minorar o problema, o Senador Walter Pinheiro apresenta PEC, atualmente em tramitação. Nessa proposta, em caso de impedimento do Presidente eleito, o cargo seria assegurado interinamente pelo presidente do STF.

[5] Em: Carta-Testamento e Carta-Despedida de Getúlio Vargas.

[6] Idem.

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