Líbia

José Goulão: Líbia, uma obra-prima da Otan

04/08/2016
Este Daesh líbio que agora o Pentágono combate é o mesmo de que a Otan se serviu para silenciar Khaddafi Foto de Ilustração de Amjad Rasmi

Quem desejar conhecer os exemplos dos resultados mais relevantes da cruzada democratizadora que a Otan desenvolve um pouco por todo o mundo poderá estudar a democracia afegã – e não ficará mal servido.

Por José Goulão, em AbrilAbril

Eleições falsificadas para manter os políticos convenientes nos cargos públicos, uma guerra interminável e cada vez mais privatizada, para gáudio das multinacionais de segurança, mercenários e armamentos, e, acima de tudo, o paraíso monopolista da indústria mundial de heroína, fazendo empalidecer a Colômbia como Meca da coca e derivados, transformando os barões mexicanos da droga em pouco mais que merceeiros.

Ou poderia analisar os case studies da Polônia e da Ucrânia – e outros com inegáveis afinidades; a Polônia sob ocupação militar da própria Otan, tal é a parafernália guerreira ali instalada; a Ucrânia transformada em campo de formação de grupos de assalto nazistas e de bandos de mercenários islâmicos treinados por oficiais norte-americanos “na reserva”, com o pretexto de que a ameaça putinista não abranda enquanto o mundo não se transformar numa gigantesca Crimeia; e ambos os países demonstrando como a democracia moderna, a favorita da Aliança Atlântica, convive com o fascismo tal e qual Deus e os anjos.

Tratando-se todos eles de casos meritórios, permitam-me, contudo, que escolha a Líbia de hoje como obra-prima da Otan. É que nunca qualquer ideólogo, por mais retorcido e criativo que fosse ou seja, conseguiu imaginar algo tão democrático.

Na Líbia, ao que consta, aviões militares norte-americanos, isto é, da Otan, travam a guerra final contra o Daesh (o chamado Estado Islâmico, na sigla em árabe), ou pelo menos para retirar a estes mercenários ambulantes o controle do Golfo e da costa de Sirte, por acaso – por mero acaso – o maior centro da indústria petrolífera líbia. Na Líbia, pelo menos agora, o Pentágono pode dar largas à sua tão propagandeada batalha “contra o Daesh” sem estar obrigado a conter-se, como acontece por exemplo na Síria. Aqui, tal ofensiva não pode ser plena para não se transformar em “fogo amigo” e vitimar os terroristas “moderados” que lutam ao lado do Daesh e da al-Qaida, ou para não prejudicar o objetivo prioritário de aniquilar o governo da Síria, ou ainda para não aborrecer Israel, que “não quer a derrota do Isis (o chamado Estado Islâmico, nasigla em inglês) na Síria”, segundo o seu chefe da espionagem militar. Este Daesh líbio que agora o Pentágono combate é o mesmo de que a Otan se serviu para silenciar Kadafi – como os dirigentes de Paris tanto queriam – e no qual a CIA e correlativos recrutaram os chefes para infiltrar o terrorismo islâmico na Síria, por exemplo Abelhakim Belhadj, identificado pela Interpol como “chefe do Estado Islâmico no Magreb”.

Na Líbia, o país maior produtor de terroristas islâmicos per capita, confrontam-se hoje vários governos, numerosas milícias e hordas de mercenários, dezenas de senhores da guerra e respectivos exércitos tribais. Isto é, poucas democracias serão tão ricas, multifacetadas e plurais como a que a Otan criou na Líbia.

Há o governo do Congresso Geral Nacional (CGN) em Trípoli, assente numa coligação islamita “de salvação nacional” que não aceitou os resultados gerais das eleições de 2014, por um lado porque as perdeu; por outro lado, invocando uma razão óbvia: alguém no seu juízo perfeito pode ter como referência eleições feitas numa situação caótica e de terror como a líbia?

“Enfim, cinco anos e mais de duas centenas de milhares de mortos depois, a Líbia tem um “governo unificador” com mandato da ONU em Trípoli (…).”

A coligação islamita assenta na Irmandade Muçulmana, com apoio mais ou menos tácito do Ansar al-Sharia (heterônimo líbio da al-Qaida) e sustentada internacionalmente por reconhecidas democracias como o Catar, o Sudão, a Turquia de Erdogan e, na sombra, a Arábia Saudita. Esta coligação tem como inimigos jurados o Egito dos generais e os Emirados Árabes Unidos, que de vez em quando a bombardeiam por motivos também inspirados na transparente democracia que ambos os Estados praticam – de tal modo que os Emirados se transformaram num farol para alguns dirigentes europeus, como o atual primeiro-ministro italiano Matteo Renzi.

O CGN de Trípoli, no entanto, parece já não estar apenas por conta própria e dos países que o apoiam. Testemunhou recentemente o seu apoio ao Governo do Acordo Nacional, uma descoberta da ONU que simula um entendimento entre muitas facções para a formação de um “governo unido” em Trípoli. Neste momento, portanto, a diplomacia da ONU e o “islamismo” moderado flertando com a al-Qaida e apoiado pelo democrata Erdogan fingem que existe uma rota de unificação na Líbia que todos percorrem.

Porém, na Cirenaica, em Tobruk, existe o governo do “Conselho dos Deputados”. Junta forças vitoriosas das eleições de 2014, usufrui, em princípio, do reconhecimento internacional e se beneficia dos apoios do Egito, dos Emirados Árabes Unidos e dos serviços secretos de grandes potências da Otan como a França, o Reino Unido e os Estados Unidos. A morte de três espiões franceses na Líbia, em 17 de Julho, escancarou o tipo de envolvimento da espionagem internacional no apoio a esta facção. Como se percebe, nem todas as aventuras dos expeditos agentes secretos acabam em glória como as do James Bond.

A par do “Conselho de Deputados” em Tobruk existe uma espécie de exército regular líbio, também reconhecido internacionalmente, comandado pelo general Khalifa Haftar, um antigo dissidente da estrutura dirigente de Kadafi. Nesse cenário emerge agora a figura de Saif Islami, o filho sobrevivente de Kadafi, recentemente libertado da prisão e que vai mobilizando mais apoios políticos do que seria de supor.

Enfim, cinco anos e mais de duas centenas de milhares de mortos depois, a Líbia tem um “governo unificador” com mandato da ONU em Trípoli, ao qual se associou a coligação islamita “moderada”, discretamente apoiada pela al-Qaida, Catar, Arábia Saudita e por um membro da Otan como a Turquia; caças norte-americanos, logo da Otan, usam o espaço aéreo do país como coisa sua para combaterem um grupo terrorista que vão poupando noutros lados, por exemplo na Síria; entretanto, o governo reconhecido internacionalmente, que não é o da ONU, continua instalado em Tobruk com o apoio exposto do Egito e dos Emirados Árabes Unidos e encoberto dos serviços secretos das principais potências da Otan – Estados Unidos, França e Reino Unido. A alegada legitimidade eleitoral e o apoio da ONU estão em campos opostos enquanto os membros da Otan distribuem o seu apoio por várias facções, incluindo a do filho do dirigente que derrubaram e silenciaram.

A democracia da Otan brilha na Líbia em todo o seu esplendor.

* José Manuel Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a atividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Econômico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi diretor.Foi também diretor de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na área de Política internacional , especialmente nas questões do Oriente Médio, sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2 da RTP

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