Entrevista

O rico legado de Hugo Chávez para a Venezuela, a América Latina e o mundo

16/03/2016

Amor, trabalho e estudo; luta e compromisso, esta pode ser a síntese do legado do comandante-presidente Hugo Chávez, na opinião de Víctor Rios, consultor em temas de geopolítica e economia internacional, especializado em América Latina.

Rios, que é pesquisador do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, aprofundou este tema durante entrevista à Prensa Latina.

Prensa Latina: Nos momentos em que a Venezuela e a América Latina e o Caribe vivem um cenário complexo, que importância tem o legado do comandante-presidente Hugo Chávez? 

Víctor Rios: Parece-me fundamental, porque ainda que só tenham passado três anos desde a sua partida, já há uma verdadeira perspectiva histórica para ver a importância de seu legado para a Venezuela, a América Latina e o mundo.

Para a Venezuela, pelos direitos restituídos a seu povo; pela dignidade e a consciência política como instrumento conquistado por seu povo graças ao empenho de Chávez e dos bolivarianos, com uma Constituição das mais avançadas, com direitos não reconhecidos em grande parte do mundo desenvolvido, direitos que fazem bastante falta aqui no hemisfério norte.

Um legado à região, na construção de uma América Latina soberana, independente do império norte-americano. Chávez pôde encarnar as ideias de José Martí e Simón Bolívar de independência e soberania construindo o que poderíamos chamar anéis de proteção dos povos latino-americanos frente ao império.

Um primeiro anel: a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América e Caribe, que tem sido muito importante para a independência dos países caribenhos relativamente à sua dependência da América do Norte.

Um segundo anel: Mercosul e Unasul, também importantes para a reconstrução de uma América do Sul soberana; e um terceiro anel: a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos.

Esse é o legado de Chávez, junto com outros líderes e povos como Cuba, Equador, Bolívia e Nicarágua. Isso mudou o mapa da América Latina e pegou de surpresa o império norte-americano, ocupado em suas aventuras bélicas no Oriente Médio, por exemplo.

Também é um legado para o mundo em vários sentidos. Para os povos, porque retomou a atualidade do socialismo como alternativa ao neoliberalismo e ao capitalismo. Chávez teve audácia, coragem e integridade para propor a atualidade, necessidade e possibilidade do socialismo.

Cuba estava sozinha na construção do socialismo na América Latina. Agora Cuba já não está sozinha, pois outros países da região têm empreendido caminhos para transcender o neoliberalismo, a opressão política e cultural, e a exploração econômica própria de um sistema que está em crise.

Tudo isso é o legado para a Venezuela, a América Latina e o mundo, na construção de uma nova geopolítica, na apresentação da atualidade do socialismo, no uso de ferramentas para a multipolaridade, exigindo a reforma das Nações Unidas e, ao mesmo tempo, estabelecendo alianças com as chamadas economias emergentes, com países como China, Rússia e a Índia, entre outros.

Em momentos em que o império norte-americano quer desembaraçar sua aventura no Oriente Médio , que o levou a bastantes derrotas e muita despesa, e quer recuperar o que sempre considerou como seu quintal, é importante que os povos latino-americanos sejam conscientes do valor desse legado e o defendam.

O legado de Chávez poderia ser sintetizado como amor pelos mais próximos, a seu próprio povo e à humanidade; trabalho e estudo como um binômio muito potente para entender e avançar; e luta e compromisso individual e coletivo, para transformar-nos e melhorarmos como seres humanos, além de ajudar à transformação da sociedade.

Prensa Latina: Que atuação você espera da integração existente na América Latina e no Caribe para atuar frente ao complexo cenário que a região nos propõe? 

Víctor Rios: É necessário atuar a partir dos governos e das instituições criadas nos últimos anos e desde os movimentos sociais e populares. Essa sinergia é imprescindível.

Acho que os governos têm de manter-se firmes e proteger o que foi construído frente à ofensiva do império norte-americano que tem lançado um eixo econômico pelo Pacífico para contrapor-se aos mecanismos como a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, a Petrocaribe e o Mercosul.

Tivemos nestes últimos meses uma série de acontecimentos adversos. A vitória do neoliberal Maurício Macri na Argentina. O povo argentino já está nas ruas defendendo os direitos que Macri quer roubar, direitos adquiridos durante todos estes anos.

Sobre o referendo da Bolívia, eu considero um episódio menor e reversível que se aprende dos possíveis erros e insuficiências neste momento.

Em Cuba, tenho a impressão de que o império segue aplicando dois pesos, duas medidas, já que procura a normalização política, mas não acaba com um bloqueio que é extraordinariamente fracassado, doloroso para o povo cubano e que se confronta com toda a comunidade internacional.

Aí há uma dupla atitude do império norte-americano. Não hesito em continuar qualificando-o de império porque, ainda que esteja em declínio, sua vocação foi e continua sendo imperial. Seu retrocesso no conjunto da geopolítica mundial é o que o está levando a uma ofensiva na América Latina para recuperar a posição nessa região.

Os povos devem ser mantidos em alerta. Os povos e os movimentos não podem delegar a participação, a ação política só aos governos que elegeram.

Os governos precisam da mobilização popular, e elevar a consciência significa perceber as ameaças antes de que se materializem, como no caso da Argentina. Às vezes aprende-se por antecipação – é o desejável – e às vezes por choque. O povo argentino vai sofrer o choque das medidas que Macri impõe.

Se na Venezuela a direita, que ganhou a Assembleia Nacional há três meses, conseguisse tirar do papel as privatizações e as medidas que propõe, também o povo venezuelano sentiria na pele um retrocesso, mas duvido de que a direita venezuelana esteja em condições e seja capaz de pôr em prática medidas que legisla, algumas delas claramente inconstitucionais.

Prensa Latina: Como você percebe, enquanto estudioso, os acontecimentos recentes na região como o fato de a direita ser a maioria na Assembleia Nacional na Venezuela, a chegada ao governo de Macri na Argentina e os resultados do referendo na Bolívia? 

Víctor Rios: Eu não acho que a história seja linear nem creio em conquistas irreversíveis, mas acho que há avanços históricos que, apesar de se transitar por conjunturas adversas como a atual, podem ser mantidos.

Os processos revolucionários não são lineares, têm fluxos e refluxos, como a luta popular. Depois de anos de claro avanço de políticas sociais e progressistas, ocorre um verdadeiro cansaço dos povos que têm obtido direitos que já consideram como outorgados e, portanto, não se dão conta do valor desses direitos em muitos casos.

Olham e pensam que o que as revoluções conquistaram é terreno conquistado, irreversível. O povo também está mais exigente – porque a consciência política tem aumentado – e passa a pedir melhor gestão dos governos. E aí saltam aos olhos as debilidades na gestão de alguns dos governos progressistas latino-americanos. Também tem havido uma cobrança sem consciência política suficiente em muitos setores populares para perceber os riscos de perder o que se tem e a necessidade de seguir mudando o sistema de valores e continuar avançando para um sistema de valores compatível com a ecologia, com a igualdade social.

Este é todo um trabalho de luta cultural e de ideias; às vezes, inclusive vanguardas revolucionárias que se ocuparam da gestão de governo nos últimos tempos, têm deixado de lado esse campo da luta de ideias, da luta cultural.

Prensa Latina: Você considera então que entre as principais lições que se depreendem desse processo é não ficar desmobilizados, estar alertas e, como dizia Chávez, prezar pela unidade, unidade e mais unidade? 

Víctor Rios: Absolutamente sim. Estou convencido de que a desmobilização trabalha em prol da perda dos direitos que se supõe já adquiridos, como irremovíveis. É desmobilização de força na rua e de consciência, cultural e social.

É preciso continuar semeando no campo da luta de ideias e da mobilização social para poder seguir obtendo conquistas no terreno político, no terreno institucional. Se a luta de ideias e a mobilização social cessam, é muito difícil que os processos de transformação nas instituições se mantenham vivos

As instituições precisam de vigilância moral, ética e dos desafios culturais para continuar avançando.

É importante nestes momentos de incerteza no contexto geopolítico internacional, não ser capturados pela confusão interessada que semeiam os meios culturais do império, que são muito potentes.

Fonte: Prensa Latina, edição em português

Compartilhe:

Leia também