Opinião

O trabalho ideológico na nova era do socialismo na China

06/12/2021

Por Gabriel Martinez (*)

A política de Reforma e Abertura, iniciada pelo Partido Comunista da China em 1978, produziu importantes transformações no âmbito econômico do país. A transformação na estrutura de propriedade, aos poucos, fez com que a estrutura básica das relações de propriedade vigente no país se alterassem para um sistema onde a economia pública estatal passava a ser considerado a sua coluna vertebral, porém, convivendo com múltiplas formas de propriedade, que existem e se desenvolvem conjuntamente (incluíndo a propriedade privada nacional e estrangeira). Essas transformações foram acompanhadas por uma série de mudanças de ordem ideológica, mudanças que exercem influência nos mais variados setores da vida social. É possível notar tais influência no âmbito do modo de vida da população, na economia, na cultura, nas artes e também na política. A sociedade chinesa, do ponto de vista ideológico, ficou mais “diversificada” e tal diversificação, obviamente, não apenas possui aspectos positivos, mas também produz consequências negativas e traz novos desafios para o desenvolvimento do socialismo na China. Neste artigo tentarei apresentar em linhas gerais alguns aspectos das formulações do Partido Comunista da China sobre o trabalho ideológico e como este trabalho vai adquirindo um novo papel na China liderada por Xi Jinping.
A luta contra a liberalização burguesa na nova era do socialismo
Após o início das reformas, surgiu uma tendência ideológica na China chamada de “liberalização burguesa”. O fenômeno da liberalização burguesa, até os diais atuais, exerce uma influência perniciosa no processo de desenvolvimento da China e da construção de uma cultura socialista. Como o Partido Comunista define essa liberalização? Segundo Deng Xiaoping:
Desde a queda do Bando dos Quatro uma tendência ideológica que nós chamamos de liberalização burguesa surgiu. Os seus expoentes idolatram a “democracia” e a “liberdade” dos países capitalistas ocidentais e rejeitam o socialismo. Isso não pode ser tolerado. A China deve se modernizar, mas ela não deve promover a liberalização ou tomar o caminho capitalista, como os países ocidentais fizeram. [1]
A citação de Deng Xiaoping nos mostra claramente que, desde o início, o problema da liberalização burguesa sempre foi alvo da atenção por parte dos dirigentes do Partido Comunista da China. Deng Xiaoping, Chen Yun, Jiang Zemin, Hu Jintao, etc., trataram diversas vezes a respeito desse problema. Contudo, não é errado dizer que ao longo dos anos, longe dele ter sido resolvido, ele ainda existe e exerce considerável influência. Frente a nova linha política aprovada após a 3ª Sessão Plenária do 11º Comitê Central do PCCh, realizada em 1978, que estabeleceu uma ruptura com a linha anterior de “tomar a luta de classes como elo principal”, colocando a construção econômica e a modernização socialista no centro da atividade do Partido, surge uma tendência política bastante ativa, que defendia a ideia de que, além das reformas na esfera econômica, eram também necessárias levar adiante reformas de caráter político, pedindo por mais “democracia” e “liberdade”. Tal corrente ideológica tornou-se bastante ativa politicamente, em especial a partir da década de 80, buscando desviar a Reforma e Abertura do seu caminho e direção original de aperfeiçoamento do sistema socialista, para o caminho da restauração do capitalismo e do sistema político de tipo burguês, a exemplo do que aconteceu na União Soviética.
Em um primeiro momento, especialmente entre os círculos intelectuais, uma onda anti-Mao Tsé-tung tomou conta do país, levando a uma aberta contestação às resoluções apresentadas pelo PCCh em seu histórico documento Sobre alguns problemas na história de nosso Partido desde a fundação da RPC até os dias atuais de 1981. O documento, apesar de afirmar que Mao Tsé-tung cometeu alguns erros no final de sua vida, é bastante claro no que diz respeito ao reconhecimento e exaltação do papel histórico do líder chinês na história da construção do Partido e da República. O documento diz claramente que os acertos de Mao Tsé-tung pesam muito mais do que seus erros. Diz a resolução:
O Camarada Mao Tsé-tung foi um grande Marxista e um grande revolucionário proletário, estrategista e teórico. É verdade que ele cometeu graves erros durante a “revolução cultural”, mas, se julgarmos suas atividades como um todo, suas contribuições para a revolução chinesa indiscutivelmente superam seus erros. Seus méritos são de primeira ordem e seus erros de segunda ordem. Ele prestou inestimável serviço na fundação e construção de nosso Partido e do Exército Popular de Libertação da China, conquistando a vitória pela causa da libertação do povo chinês, fundando a República Popular da China e avançando nossa causa socialista. Ele fez grandes contribuições para a libertação das nações oprimidas do mundo e para o progresso da humanidade. [2]
Os defensores da liberalização burguesa, se aproveitando dos debates iniciados por todo o país sobre como avaliar os trinta primeiros anos do processo de construção socialista da China, usaram-no como desculpa para colocar adiante suas ideias anticomunistas. O problema da liberalização burguesa atingiu níveis alarmantes e acabou resultando nos tumultos contra-revolucionários de 1989, mostrando que, mesmo tendo levado a cabo campanhas para combater a chamada “poluição espiritual”, nessa época vários erros e falhas foram cometidos pelo Partido no tocante a maneira como este conduziu o trabalho de educação política e ideológica dos quadros do Partido, e da população de uma maneira geral. Tal erro foi reconhecido pelo próprio Deng Xiaoping, que afirmou naquela época: “Nosso erro mais grave foi na edução — nós não fornecemos suficiente educação para a juventude, incluindo os estudantes”. [3]
Os líderes fundadores da República Popular da China sempre prestaram grande atenção ao problema da educação ideológica. Mao Tsé-tung, na clássica obra Como Solucionar Corretamente a Contradição no Seio do Povo chama atenção para o caráter prolongado da luta ideológica entre burguesia e proletariado. Segundo Mao Tsé-tung:
É ainda necessário um longo período para se decidir o resultado da luta ideológica travada em nosso país entre o socialismo e o capitalismo, visto que a influência da burguesia e dos intelectuais que provêm da velha sociedade persistirá na China durante muito tempo como ideologia de classe. Se não compreendermos bem esta situação, ou se não a compreendermos totalmente, correremos o risco de cometer o mais grave dos erros, o de ignorar a necessidade de conduzir a luta no plano ideológico. [4]
O PCCh desenvolveu ao longo dos anos uma linha política ideológica bastante consistente para lidar com o problema da liberalização burguesa. Jiang Zemin, por exemplo, afirmou: “A prática do trabalho ideológico confirma que se o pensamento proletário não ocupar sua posição, esta será ocupado pelos pensamentos não-proletários. Nós devemos prestar atenção e aprender dessas lições”. [5]
No entanto, mesmo reconhecendo que o Partido sempre chamou atenção para a necessidade de se fortalecer o trabalho ideológico, não se pode deixar de reconhecer que a chegada de Xi Jinping ao poder representa um ponto de virada na linha política do Partido Comunista da China. Particularmente importante para entendermos o conteúdo político e ideológico do pensamento de Xi Jinping é a analise de seu discurso realizado em uma conferência de propaganda e trabalho ideológico, proferido em 19 de agosto de 2013. Neste discurso, mantendo-se fiel aos princípios estabelecidos pelos dirigentes precedentes (Mao Zedong, Deng Xiaoping, Jiang Zemin e Hu Jintao), Xi Jinping avança em reflexões e formulações importantes sobre como desenvolver o trabalho político e ideológico na China. Apesar de nessa época o Partido Comunista da China ainda não ter cunhado o termo “nova era do socialismo”, é evidente que as ideias contidas neste importante documento são a bússola que vão guiar o Partido naquilo que eles chamam de “nova era do socialismo”, era esta que se inicia oficialmente a partir da realização do 19º Congresso, realizado em 2017. Neste discurso, diz Xi Jinping:
A construção econômica é o trabalho central do Partido, o trabalho ideológico é um trabalho extremamente importante do Partido (grifo nosso). Todo mundo entende claramente as posições de ambas as áreas do trabalho, mas em algumas localidades e departamentos, é claro que existe o fenômeno de que em palavras se reconhece a importância de ambos aspectos do trabalho, mas não existe uma clareza na hora de aplicar este princípio. Fazer o trabalho ideológico e de propaganda exige que, antes de mais nada, este problema seja resolvido. [6]
A construção econômica do país é ainda o trabalho central de todo o Partido. Essa importante definição, apresentada pela primeira vez durante a 3ª Sessão Plenária do 11º Partido Comunista da China, em 1978, parte do entendimento de que a China, sendo um país ainda atrasado (principalmente se comparada aos países capitalistas centrais), precisa colocar no centro de sua atenção a construção econômica e a promoção do desenvolvimento das forças produtivas. Como reconhece o economista marxista Zhou Xincheng, estabelecer a construção econômica como trabalho central é “resultado da contradição principal da sociedade”, portanto não pode ser entendido como uma decisão subjetiva. [7] Ao destacar que o trabalho ideológico é um “trabalho extremamente importante”, Xi Jinping chama atenção para a necessidade de que todo o Partido tenha um correto entendimento a respeito deste trabalho, reconhecendo que em muitos aspectos ele não foi corretamente executado, sendo até mesmo negligenciado.
Wang Qishan, atual vice-presidente da República Popular da China e membro do Comitê Permanente do Birô Político do Partido Comunista da China, em artigo publicado no Diário do Povo, enfatizou que Xi Jinping “aclarou ideias confusas, recuperando posições perdidas, revertendo o caminho errôneo, estabelecendo a autoridade do Comitê Central, basicamente revertendo a situação de enfraquecimento da liderança do Partido”. [8]
As afirmações feitas por Wang Qishan são o reconhecimento, por parte de um alto dirigente do Partido e do governo, de que muitas coisas precisam ser corrigidas para que a causa do socialismo na China possa seguir avançando por um caminho correto. O enfraquecimento da liderança do Partido é algo que está relacionado intimamente com o trabalho ideológico e educacional. O trabalho ideológico é precisamente uma das principais frentes em que o Partido deve exercer o seu papel de liderança, fazendo com que os erros cometidos nesta área sejam retificados, e a causa do socialismo na China continue avançando de maneira saudável. O trabalho ideológico, sendo um “trabalho de extrema importância”, não pode ser negligenciado sob a desculpa de que “desenvolver a economia” é o aspecto central do trabalho do Partido. Como afirmou o antigo líder Chen Yun, ainda na década de 80:
Se promovermos o progresso material socialista e não o progresso cultural e ideológico socialista ao mesmo tempo, nos desviaremos do caminho correto. Se as instituições ou quadros dirigentes esquecem ou abrandam os seus esforços para construir a civilização socialista, cultural e ideologicamente, não serão capazes de fazer um bom trabalho na construção da civilização socialista materialmente e até se afastarão dos ideais socialistas e comunistas. Isso é muito perigoso. [9]
Nesse sentido, os acontecimentos na União Soviética e no Leste Europeu são o exemplo mais concreto de quais são os resultados produzidos pela subestimação do trabalho político e ideológico, bem como de uma linha política equivocada, na qual o Partido Comunista da União Soviética, especialmente após o falecimento de Josef Stálin, começou a paulatinamente se distanciar do marxismo-leninismo. Para ilustrarmos com um exemplo: o professor norte-americano David Kotz, em um artigo onde narra sua experiência na União Soviética, fala sobre um episódio onde ele teria perguntado a um oficial se este era membro do Partido Comunista. Segundo Kotz, o oficial assim respondeu: “Sim, eu sou um membro do Partido Comunista, mas não sou comunista”. [10]
Experiências como as relatadas pelo professor David Kotz ajudam-nos a perceber qual era o ambiente ideológico interno prevalecente no PCUS e na própria sociedade soviética, já nas vésperas de sua dissolução. O exemplo soviético também deve servir de lição para os comunistas chineses, dado que este fenômeno também não é algo incomum no país asiático. Aqui estamos diante de um problema intimamente relacionado com o a questão das convicções políticas e ideológicas que devem guiar a atividade e a ação dos membros do Partido. Sobre este problema, os chineses são cientes de sua existência desde o momento em que ele começou a se manifestar de maneira aguda.
Assim, os motivos que possibilitaram a dissolução da União Soviética são alvo de constante reflexão por parte dos dirigentes do PCCh. Xi Jinping também chegou a se referir explicitamente ao exemplo soviético para lançar um alerta ao PCCh. Segundo Xi Jinping, ao começar pela negação de Lenin e Stálin, a União Soviética embarcou no caminho do niilismo histórico, algo que preparou o terreno ideológico para a justificação da “evolução pacífica” do socialismo ao capitalismo. Segundo Xi Jinping:
Por que a União Soviética se desintegrou? Por que o Partido Comunista Soviético caiu do poder? Uma razão importante foi que a luta no campo da ideologia foi extremamente intensa, negando completamente a história da União Soviética, negando a história do Partido Comunista Soviético, negando Lênin, negando Stalin, criando niilismo histórico e pensamento confuso. Os órgãos do Partido em todos os níveis haviam perdido suas funções, os militares não estavam mais sob a liderança do partido. No final, o Partido Comunista Soviético, um grande partido, se dispersou, a União Soviética, um grande país socialista, se desintegrou. [11]
Foi no terreno ideológico e na falta de vigilância diante das forças hostis ao socialismo que a União Soviética foi derrotada. Mao Tsé-tung, muitos anos antes, analisando a importância da ideologia para o processo de tomada do poder político, seja das classes revolucionárias, como das classes reacionárias, afirmou: “Qualquer um que queira derrubar um regime político deve primeiro criar a opinião pública e fazer algum trabalho ideológico preparatório. Isso vale tanto para as classes contra-revolucionárias como para as classes revolucionárias”. [12]
O Partido deve manter vigilância e combater todas as tendências que buscam conduzir a China pelo caminho da “evolução pacífica”. O problema da “evolução pacífica” no movimento comunista internacional foi pioneiramente analisado por Mao Tsé-tung, que desenvolveu importantes contribuições para o entendimento desse fenômeno que ocorre nas sociedades socialistas. Particularmente após o final da Segunda Guerra Mundial, com a formação do campo socialista e o fortalecimento sem precedentes das forças revolucionárias em nível internacional, o imperialismo passou a buscar e desenvolver uma nova tática e uma nova estratégia para lidar com tais países. No âmbito da guerra fria, o imperialismo lançou uma poderosa campanha de propaganda política e ideológica que tinha precisamente as populações dos países socialistas como alvo. Por meio da penetração cultural e ideológica, o imperialismo passou a tentar recrutar simpatizantes nas fileiras dos Partidos Comunistas e da população de uma maneira geral, buscando consolidar um processo de restauração do capitalismo em uma ou duas gerações. Com a chegada de Kruschev ao poder na União Soviética — e particularmente após a realização do 20º Congresso do PCUS — o imperialismo encontrou a oportunidade perfeita para intensificar sua guerra ideológica contra o movimento comunista internacional. Em 1959, ao analisar um discurso proferido por John Foster Dulles, secretário de estado dos Estados Unidos, onde este anuncia as bases do que viria a ser a estratégia imperialista da “evolução pacífica”, Mao Tsé-tung afirmou que o imperialismo buscava transformar os países socialistas, promovendo atividades subversivas e tentando transformá-los internamente em conformidade com suas ideias. [13]
Assim que este problema apareceu diante do campo socialista e dos Partidos Comunistas, o Partido Comunista da China esteve na linha de frente de sua denúncia, passando a desenvolver uma constante luta ideológica contra as ideias revisionistas que eram propagadas pelo Partido Comunista da União Soviética, ideias que na prática contribuíam com a estratégia que estava sendo colocada adiante pelo imperialismo norte-americano. Contudo, especialmente após o início da Reforma e Abertura, em vários níveis o Partido baixou a guarda frente ao perigo da evolução pacífica, o que deu livre curso ao fortalecimento da influência cultural imperialista e à propagação da liberalização burguesa. Os protestos anti-comunistas, que tiveram o seu auge em 1989, nos acontecimentos na Praça da Paz Celestial, comprovam tal tese. O próprio Deng Xiaoping, comentando o fim da Guerra Fria e a crise geral do campo socialista, reconheceu que:
Parece que uma Guerra Fria chegou ao fim, mas que outras duas já começaram: uma está sendo travada contra todos os países do Sul e do Terceiro Mundo, e a outra contra o socialismo. Os países ocidentais estão encenando uma terceira guerra mundial sem armas de fogo. Com isso quero dizer que eles querem promover a evolução pacífica dos países socialistas para o capitalismo. [14]
O inicio da guerra comercial contra a China, a ferrenha campanha promovida pelo imperialismo sobre a questão do Xinjiang e a tentativa de politizar e culpar a China pelo início da pandemia do coronavírus, nada mais são do que aspectos dessa luta ideológica promovida pelo imperialismo norte-americano contra o socialismo chinês. Para enfrentar este novo desafio, é fundamental que o Partido e a sociedade fortaleçam o trabalho ideológico e fortaleçam a sua compreensão da teoria marxista. A questão do trabalho e da educação ideológica, longe de ser algo trivial, é uma questão vital para a continuidade e permanência do Partido Comunista da China como força dirigente da nação chinesa e da causa de construção do socialismo na China. O fato de tal problema ter sido reconhecido pelos mais altos dirigentes como algo premente, revela o quão grave era a situação ideológica no país antes da chegada de Xi Jinping ao poder.
A luta contra a marginalização do marxismo e reafirmação de sua atualidade
Uma das principais evidências desse problema no âmbito ideológico é a marginalização sofrida pelo marxismo nos últimos anos. Xi Jinping vem prestando bastante atenção a tal problema, visando restaurar e consolidar a autoridade e o papel dirigente ocupado pelo marxismo como base teórica que guia a construção e a modernização socialista na China. Alertar para o problema da marginalização do marxismo, longe de ser um exagero, é algo bastante claro para qualquer pessoa minimamente familiarizada com a situação interna do país e conheça um pouco o ambiente ideológico vigente no interior da sociedade chinesa. O economista marxista Liu Guoguang, ao analisar a situação ideológica nos círculos teóricos — em especial no campo da economia política — da China afirmou:
Durante algum tempo, no campo da pesquisa e do ensino de ciência econômicas, a influência da economia ocidental aumentou e a posição guia da ciência econômica do marxismo foi enfraquecida e marginalizada. No campo da pesquisa e do ensino da teoria econômica, parece que atualmente a economia ocidental tornou-se tendência dominante; muitos estudantes, consciente ou inconscientemente, tomam a economia ocidental como a tendência econômica dominante em nosso país. Algumas pessoas consideram que a economia política ocidental é o pensamento orientador do desenvolvimento e da reforma na China, alguns economistas abertamente defendem que a economia política ocidental deve ser vista como a tendência dominante, substituindo o posição guia da economia marxista. A ideologia burguesa ocidental permeia tanto o trabalho de pesquisa econômica, quanto o trabalho de formulação de decisões econômicas. Estou muito preocupado a respeito desse fenômeno. [15]
Não é apenas no âmbito do estudo e ensino da economia que o marxismo passa por um processo de marginalização. Também nos domínios da história, filosofia, artes, etc., o marxismo foi marginalizado em vários níveis. Bastante presente no ambiente ideológico do país é a tendência do chamado “niilismo histórico”, termo que o Partido utiliza para designar toda sorte de ideias que buscam explicar a história da China — em especial a história do PCCh e da construção do socialismo — de maneira deturpada. No âmbito ideológico, o principal alvo do “niilismo histórico” é precisamente o marxismo, ideologia oficial do Estado e que, teoricamente, deveria guiar e orientar todas as atividades e setores do país. O historiador Gong Yun, membro da Academia Chinesa de Cientistas Sociais, explicando a influência do niilismo histórico na China atual, afirmou:
Nas últimas duas décadas, embora o niilismo histórico tenha sido criticado nos círculos acadêmicos, o efeito dessas criticas ainda não tem sido óbvio. As visões advogadas pelo niilismo histórico possuem uma ampla influência social, especialmente nas novas mídias, alguns jornais e entre o povo comum. O niilismo histórico formou um certo solo social e criou sérias consequências de divisão e antagonismo. [16]
A partir do 18º Congresso do PCCh, várias campanhas ideológicas internas para combater o niilismo histórico começaram a ser realizadas, e o próprio Xi Jinping chegou a analisar tal fenômeno em um dos seus discursos. Na conferência de estudo da história do Partido do dia 20 de fevereiro de 2021, Xi Jinping afirmou: “Nós devemos ter uma clara posição contra o niilismo histórico, fortalecer a orientação ideológica e analise teórica, clarificando os entendimentos vagos e unilaterais a respeito de alguns eventos históricas na historia de nosso Partido”. [17]
É precisamente pelo fato de a situação ter chegado a tal nível critico que Xi Jinping presta bastante atenção ao problema da necessidade de se consolidar a posição guia do marxismo na campo ideológico. É também por essa razão que nos últimos anos estão sendo feitos repetidos chamados para que os quadros do Partido elevem o seu nível político-ideológico e aprofundem o seu estudo e conhecimento dos clássicos do marxismo. Falando especificamente sobre a marginalização do marxismo, Xi Jinping disse que:
Algumas pessoas consideram o marxismo ultrapassado, que a China atualmente não segue o Marxismo; algumas pessoas consideram que o Marxismo é apenas uma “pregação” ideológica, sem racionalidade e sistematização científica. No trabalho prático, em alguns campos o Marxismo foi marginalizado, transformado em algo vazio, simbólico (grifo nosso). [18]
O fortalecimento do papel orientador do marxismo é fundamental para a garantir que os quadros do Partido tenham uma correta visão a respeito das tendências do desenvolvimento social, saibam entender as diferenças fundamentais existentes entre capitalismo e socialismo e aumentem sua confiança política, ideológica e cultural no sistema político do socialismo com características chinesas. Apenas através do domínio do marxismo é possível compreender corretamente os reais objetivos da política da Reforma e Abertura, assim como garantir que esta continue caminhado em uma direção correta. Esta é a razão pela qual Xi Jinping insiste na necessidade de consolidar a posição do marxismo como ideologia guia do processo de Reforma e Abertura, bem como de todo o trabalho político empreendido pelo Partido Comunista da China. Como afirmou Xi Jinping:
No atual momento, o ambiente, alvo, escopo e métodos de propaganda ideológica estão passando por grandes mudanças, mas a tarefa principal do trabalho ideológico e de propaganda não mudou e não pode mudar. O trabalho ideológico e de propaganda deve consolidar a posição guia do marxismo na esfera ideológica e consolidar uma base ideológica comum para a luta unida de todo o Partido e povo. [19]
Consolidar o papel guia do marxismo, fazendo com que este passe a ser cada vez mais uma força material real guiando o processo de construção do socialismo na China é condição obrigatória para que o Partido fortaleça a sua capacidade de direção e governança, bem como continue obtendo novos êxitos no processo de construção do socialismo com características chinesas.
A existência das relações de produção capitalistas na etapa primária do socialismo e os seus efeitos no âmbito ideológico
Como afirmamos no início do artigo, a reestruturação do sistema de propriedade na China deu origem a relações de produção de tipo capitalista, de modo que elas produzem um determinado de tipo de ideologia que corresponde ao caráter dessas relações. O economista Wu Xuangong defende a ideia de que atualmente “existe na China um grande número de fenômenos e problemas econômicos que não existiam no passado e são contrários à natureza e aos princípios do socialismo”. Tais problemas são decorrentes do fato de que, na China atual, além da “contradição principal da sociedade socialista, existe também a contradição principal do capitalismo”. [20]
É correto, portanto, analisarmos qual o papel que a ideologia produzida por essas novas relações de produção capitalistas desempenham no conjunto geral do socialismo com características chinesas e como o Partido lidará com essa contradição no médio e longo prazo. O reconhecimento das contradições e problemas que apareceram no país nos últimos 40 anos — e seus efeitos no âmbito da ideologia — revela uma grande preocupação por parte dos teóricos marxistas chineses em buscar e encontrar as explicações adequadas para resolver corretamente o problema. Para tal, é preciso ter em mente o princípio básico do marxismo de que a existência determina a consciência, ou a base econômica determina a superestrutura; por isso, não seria correto considerar que o aumento dos perigos apresentados pela liberalização burguesa são obras do acaso, ou que surgem de maneira mágica. Elas se manifestam, em última instância, como representações ideológicas de novas classes sociais pequeno-burguesas e burguesas que estão ligadas por múltiplos laços à propriedade privada capitalista, além de também serem produto do aumento da infiltração ideológica promovida pelos países ocidentais, em especial os Estados Unidos e todo o seu aparato ideológico de dominação política e cultural, na medida em que houve um certo afrouxamento na educação ideológica e classista, bem como um avanço da penetração do capital estrangeiro no país. Como afirmou Wu Xuangong: “A crença no socialismo enfraqueceu gradualmente, de modo que o marxismo foi marginalizado; a ênfase no interesse próprio, bem como a busca pelos interesses materiais, tornou-se uma tendência.” [21]
Na década de 90, Deng Xiaoping e muitos quadros do Partido classificaram como equivocada a ideia de explicar o problema da liberalização burguesa a partir da analise das relações econômicas, pois viam nisso uma tentativa de se colocar um freio ao avanço das reformas. Naquelas condições não era errado colocar o problema nesses termos. No entanto, atualmente tal problema se apresenta de maneira completamente diferente da maneira como ele se apresentava na década de 80 e 90. Naquela época, não havia se formado completamente uma nova burguesia, e o problema da luta de classes se manifestava, no fundamental, apenas como uma luta contra os remanescentes das ideologias atrasadas e dos elementos diretamente ligados ao imperialismo, e que trabalhavam para sabotar a construção socialista. Atualmente a propriedade privada capitalista adquiriu uma posição e um papel infinitamente mais importante do que ela possuía no passado, o que resultou em uma alteração significativa na estrutura econômica e de propriedade na China. Isto alterou fundamente a maneira como massas trabalhadoras chinesas se relacionam com os meios de produção, sendo um fato que impõe sérios riscos ao Partido e a própria causa do socialismo no país. Sem levar em consideração a influência que as relações de produção originadas pela propriedade privada capitalista e a pressão que elas exercem para que as reformas em sua totalidade tomem a direção da liberalização burguesa, é impossível entender a essência do problema. Essa é uma questão que precisa ser observada por todos aqueles que desejam fazer uma analise realista do atual estágio de desenvolvimento do socialismo na China. Como alertou o economista Liu Guoguang:
A liberalização burguesa não ocorre apenas no campo político, mas também no campo econômico. Privatização, liberalização e mercantilização; oposição à propriedade pública, à intervenção governamental e oposição ao socialismo, tudo isso são coisas que estão todas relacionadas ao campo econômico. Não basta se opor à liberalização burguesa, politicamente. Impedir a liberalização burguesa no campo econômico é evitar que o campo econômico se deteriore. Se o campo econômico se deteriorar (for privatizado, transformado em capitalismo), o campo político também será deteriorado. Esta é um princípio comum básico do marxismo. [22]
A propriedade privada capitalista, ainda que na etapa primária do socialismo possa desempenhar um papel positivo como elemento acessório do desenvolvimento da economia socialista, em última instância, representa as relações de produção de tipo capitalista, possuindo objetivos e leis de funcionamento distintas da propriedade socialista nas suas mais variadas formas. É necessário, portanto, fazer uma diferenciação entre o que são os efeitos positivos que a propriedade privada capitalista pode criar para o desenvolvimento das forças produtivas, daquilo que é a ideologia que ela inevitavelmente produz, e os efeitos negativos gerados pelas relações de produção capitalistas nos mais variados domínios da vida social. É natural que, com o aumento da importância e da influência da propriedade privada no conjunto geral da economia, suas leis passem a influenciar os vários níveis da formação econômica-social chinesa (inclusive influenciando e exercendo pressão sobre a propriedade pública socialista), ampliando e expandindo sua capacidade de intervenção política, econômica e ideológica. Portanto, não é exagerado dizer que os mais graves problemas econômicos e sociais que existem na China atualmente são o resultado direto da intervenção das contradições produzidas pelas relações de produção capitalistas.
Frente a essa inevitabilidade, é de extrema importância que o Partido tenha bem claro que o objetivo da Reforma e Abertura é aperfeiçoar o desenvolvimento do sistema socialista, promover o desenvolvimento das forças produtivas e paulatinamente consolidar e ampliar a influência e extensão do setor público da economia, setor que representa as relações de produção socialistas. A existência da propriedade privada na China é algo que se justifica pelo relativo atraso do nível de desenvolvimento das forças produtivas. Com o avanço e desenvolvimento das forças produtivas, com o avanço da modernização, o dever das reformas é o de ajustar o papel das relações de produção socialistas, em um primeiro momento expandindo a influência e o escopo de atuação da propriedade pública dos meios de produção, colocando paulatinamente fim a tendência que perdura desde o início da política de Reforma e Abertura, a saber, a tendência do incremento e desenvolvimento muito mais rápido da propriedade privada e da diminuição paulatina da participação do setor estatal e público, criando as condições econômicas e materiais para a superação da etapa primária do socialismo. Obviamente, tais mudanças e ajustes virão acompanhados por uma aguda luta ideológica, que é também uma das formas na qual luta de classes se manifesta. Dessa forma, não são corretas as teorias e ideias que buscam apresentar as relações de produção capitalistas como “socialistas”, ou ideias que dizem que, no caso chinês, “propriedade privada não é sinônimo de capitalismo”.
Ainda não está completamente na ordem do dia o avanço para uma etapa mais avançada da construção socialista (a nova era do socialismo está situada no escopo da etapa primária do socialismo), porém é evidente que os problemas e as contradições que a China enfrenta atualmente já são bastante distintas dos problemas que se apresentavam diante do país nas décadas precedentes, algo reconhecido pelo 19º Congresso do Partido Comunista da China, que definiu que vigora na nova era do socialismo uma “nova contradição principal”. A velha definição, que dizia que a contradição principal na China era a contradição que existia entre o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e a crescente demanda das massas, deu lugar a uma nova contradição principal, sendo esta a contradição entre o desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as necessidades cada vez maiores das pessoas por uma vida melhor.
Muitos intelectuais marxistas na China consideram que, no estágio atual, para dirimir os efeitos negativos promovidos pelo desenvolvimento desequilibrado, a missão mais importante que se apresenta diante do Partido Comunista é a de lutar para efetivamente construir uma sociedade harmônica, combater os efeitos negativos produzidos pela expansão da propriedade privada, retomando certas posições perdidas pela economia pública nos últimos anos. Para uma operação de tal monta, é mais do que necessário fortalecer o trabalho ideológico e preparar a opinião pública. Objetivamente, esse é um problema que coloca em oposição dois projetos de sociedade que correspondem visões de mundo e interesses de classe distintos. Os ataques ao marxismo e as tendências que buscam diminuir o seu papel — ou até mesmo negá-lo — são evidentemente expressões dos interesses de classe daqueles grupos sociais e atores que não querem avançar pelo caminho do socialismo. Muitos desses grupos usam a bandeira da reforma e abertura para justificarem suas ideias reacionárias e sua oposição ao sistema do socialismo com características chinesas, ainda que muitas vezes façam isso de maneira velada.
O trabalho ideológico e a luta de classes
A luta entre as ideias burguesas, com todos os seus efeitos, e as ideias do proletariado, representadas pelo marxismo, é uma luta de longa duração, que existirá de maneira intensa durante todo o período da etapa primária do socialismo na China (e até depois dele), contexto onde a China ainda precisa promover o seu desenvolvimento em um mundo hegemonicamente capitalista. Na etapa primária do socialismo, ainda que dentro de uma escala determinada, a luta de classes segue existindo e ela obviamente exerce sua influência no campo ideológico. Sobre a necessidade de manter a guarda e a iniciativa na frente ideológica, destacando que no socialismo ainda existe luta de classes, Jiang Zemin, em seu discurso comemorativo do 78º aniversário de fundação do Partido, afirmou taxativamente:
A luta de classes já não é a contradição principal em nosso país, porém durante um logo período ela continuará existindo dentro de determinado limite, além disso em determinadas condições ela poderá se intensificar. Este tipo de luta expressa de maneira concentrada a oposição da liberalização burguesa aos quatro princípios fundamentais. O núcleo desta luta ainda é um problema de poder político (grifo nosso). Este tipo de luta está intimamente ligada com a luta entre infiltração e anti-infiltração, subversão e contra-subversão, evolução pacífica e combate à evolução pacífica que existe entre nós e as forças hostis. [23]
A posição do Partido Comunista da China a respeito da luta de classes no socialismo sempre foi bastante consistente e não sofreu grandes alterações desde o início da política de Reforma e Abertura. Ao criticar a concepção de luta de classes que vigorava durante o período da “revolução cultural”, o Partido passou a defender que a luta de classes no socialismo não ocupa a posição de contradição principal, mas que ela ainda segue existindo dentro de certos limites. Porém, algumas figuras, já completamente influenciadas pelo revisionismo e pelas ideias imperialistas, alegam que o conceito marxista de luta de classes estaria “ultrapassado” e frente a qualquer menção a este conceito básico do marxismo, logo tratam de alegar que existe o perigo do ressurgimento de uma nova “revolução cultural”. É importante ressaltarmos que existe uma diferença significativa entre afirmar que a “luta de classes segue existindo dentro de certos limites” e falar que “a luta de classes não existe” ou que tal teoria seria algo “ultrapassado”. Como afirmou Xi Jinping:
Devemos aderir a posição política do marxismo. A posição política do marxismo é primeiramente uma posição de classe, que implementa a analise de classes. Algumas pessoas dizem que esta ideia já não corresponde a era atual, o que é um ponto de vista equivocado. Quando afirmamos que a luta de classes em nosso país não é a contradição principal, não estamos afirmando que em nosso país a luta de classes dentro de certos limites não existe mais, ou que no âmbito internacional ela também não existe. Depois da Reforma e Abertura, as ideias do nosso Partido sobre este problema sempre foram bastante claras. [24]
A definição que reconhece que a luta de classes existe dentro de certos limites, leva em consideração a realidade concreta da China atual, realidade esta onde as diversas contradições existentes podem ser resolvidas no âmbito do sistema socialista. O Partido Comunista da China, sendo a força dirigente do Estado, possui em suas mãos os instrumentos políticos, econômicos e institucionais que o possibilitam ajustar, modificar e aplicar políticas que ajudam na resolução dos problemas e contradições que existem entre as várias classes sociais, incluindo as contradições entre burguesia e proletariado. Isso não significa dizer que, também nesse âmbito do trabalho, não existam erros e insuficiências, quase que sempre produzidos por erros no âmbito do trabalho político e ideológico. Sem uma firme visão marxista o Partido não pode exercer corretamente o seu papel de vanguarda das massas trabalhadoras na China, bem como não pode defender firmemente os interesses dessas classes.
O erro fundamental da visão de luta de classes defendida pelo PCCh no período da “revolução cultural” estava justamente no fato de que ela ampliava o escopo da luta de classes, o que na prática contribuiu para que o Partido passasse tratar determinadas contradições que existiam no seio do povo como se fossem contradições antagônicas. Era uma visão que não correspondia a situação concreta da sociedade chinesa à época; atualmente o erro principal em relação a teoria da luta de classes é cometido por aqueles que negam a sua existência objetiva. A experiência histórica da história da construção do socialismo em nível mundial ensina que a luta de classes segue existindo no socialismo — ainda que esta não seja a contradição principal nas sociedades socialistas -, portanto, não é correto nega-la ou subestimar a sua atuação.
Negar a existência da luta de classes no socialismo é um erro tão grave quanto tentar ampliar artificialmente o seu escopo. Os erros da “revolução cultural” não alteram o fato de que a luta de classes é uma realidade objetiva, e que ela segue existindo na etapa primária do socialismo. No caso chinês, dado a expansão das relações de produção capitalista, é óbvio que volta a se intensificar as contradições de classe, inclusive a contradição entre burguesia e proletariado. Sem reconhecer a existência da luta de classes é impossível adotar medidas para resolver as várias contradições sociais que existem na sociedade chinesa, o que em médio e longo prazo, resultaria na ampliação das contradições sociais, fazendo com que contradições que atualmente são de caráter não-antagônico rapidamente se convertam em contradições antagônicas.
Sem o marxismo e a Revolução de Outubro não existiria o “milagre chinês” : uma pequena critica a certas concepções sobre a “ascensão chinesa”
O sucesso obtido pelo PCCh na condução da nação chinesa pelo caminho do socialismo vem mostrando ao mundo a vitalidade e a cientificidade da teoria marxista. Frente aos inegáveis sucessos obtidos pelo Partido, dada a intensa luta política e ideológica que se desenvolve, é até certo ponto inevitável que no exterior certas figuras que acompanham o processo de desenvolvimento chinês tentem explicá-lo fazendo vista grossa aos elementos mais importantes e essenciais que definem tal processo. Bastante popular são as ideias de que o desenvolvimento da China seria resultado produzido por um estado “desenvolvimentista” no estilo Taiwan, Cingapura ou Coreia do Sul, ou um “estado civilizacional”, ressaltando aqui a “superioridade civilizacional” da nação chinesa. Para citarmos um exemplo das confusões, Martin Jacques, autor que presta um papel importantíssimo investigando o processo de desenvolvimento chinês, e se coloca abertamente contra as tentativas de lançamento de uma nova guerra fria contra o país asiático, em artigo publicado pelo Global Times, ressaltou que “é impossível entender a China nos termos do Marxismo tradicional”, acrescentando que o PCCh é “profundamente influenciado pelo confucionismo” e que a melhor maneira para compreendê-lo seria descrevê-lo como um “híbrido entre confucionismo e marxismo”. Também no artigo o autor faz questão de ressaltar o fato de que o PCCh é bastante diferente do antigo Partido Comunista da União Soviética e que eles teriam “muito pouco em comum”. [25]
Reconhecemos que em todas essas afirmações — com exceção de que o Partido Comunista da China e o Partido Comunista da União Soviética possuem muito pouco em comum” — existem uma parcela de verdade, porém, acreditamos não ser exagerado afirmar que o autor não aborda o ponto crucial do problema, que é justamente a de analisar como a sinificação do marxismo é o elemento principal que explica o sucesso e ascensão da China, e que o sistema ideológico do socialismo com características chinesas não é uma mescla eclética entre duas filosofias com bases e objetivos completamente diferentes (marxismo e confucionismo). O confucionismo, obviamente, é um importante pilar da milenar cultura tradicional chinesa, e obviamente o Partido Comunista da China reconhece e incorpora seus elementos progressistas. Porém, não se pode negar que, ao longo de sua centenária história, o movimento progressista e revolucionário chinês, da qual o Partido Comunista da China é um produto direto, sempre foi bastante critico ao confucionismo, e tudo isso muito antes da “grande revolução cultural proletária” surgir no cenário da história no final da década de 60. A afirmação que Martin Jacques faz de que o Partido Comunista da China é “enraizado e profundamente influenciado pelo Confucionismo” é uma “meia-verdade” transformada em “verdade absoluta”, pois ela nega outro fato básico que precisa ser levado em consideração, a saber, que o Partido Comunista da China nasceu em meio a uma luta ideológica e política intensa contra a ideologia confucionista e tudo aquilo que ela representou e ainda representa na história de desenvolvimento da nação chinesa. Que existam autores e personalidades chinesas — inclusive dentro do Partido — que defendam um “novo confucionismo”, ou que tentam explicar o sucesso chinês nos marcos do “confucionismo”, é um outro problema, muito relacionado com a confusão ideológica gerada por anos de um desenvolvimento relativamente não controlado das ideias burguesas, algo que já discutimos neste artigo.
Na verdade o problema da relação entre cultura tradicional chinesa e o marxismo na China é um tema que merece um artigo à parte, tamanha a complexidade do assunto. No entanto, isso não equivale dizer que para o Partido Comunista da China o confucionismo e o marxismo são duas filosofias que estariam em pé de igualdade ou, para usarmos as próprias palavras de Martin Jacques, este seria um “híbrido entre confucionismo e marxismo”. Como afirmou Hou Weimin, membro do Instituto de Marxismo da Academia Chinesa de Cientistas Sociais:
Desde a Reforma e a Abertura, existem dois tipos de pensamentos anti-marxistas. Um é a tendência ideológica de promover a restauração do feudalismo; o conservadorismo cultural e o neoconfucionismo pertencem a esta categoria. Esta tendência de pensamento é caracterizada pela defesa da “confucionização da China”e “ confucionização do Partido Comunista” sob a bandeira de levar adiante a cultura tradicional, estabelecendo “faculdades confucionistas “ nas quais estudiosos confucionistas familiarizados com os clássicos confucionistas governam a China. Apoiado por algumas pessoas no exterior, esse pensamento prevaleceu por algum tempo. No entanto, seu absurdo é óbvio caso seja feita uma investigação mais apropriada. Os seus pontos principais possuem o cheiro de zumbis feudais, então é difícil que ele obtenha uma resposta das massas. O outro pensamento é a tendência de promover a restauração do capitalismo, chamada por Deng Xiaoping de liberalização burguesa. [26]
Sobre as “poucas semelhanças” entre o PCCh e o antigo PCUS, é evidente como a maneira como o Martin Jacques joga tal informação em seu artigo induz leitor ao erro e a confusão. De qual Partido Comunista da União Soviética estaria ele se referindo? Do Partido de Lenin e Stálin ou do Partido de Kruschev, Brezhnev e Gorbachev? Afirmações superficiais como as feitas pelo autor abrem muito espaço para confusões e interpretações equivocadas a respeito da história do Partido Comunista da China e a sua evolução ao longo dos anos. É necessário ressaltarmos que, entre o Partido Comunista da China e o antigo Partido Comunista da União Soviética, existe a diferença de que o primeiro soube integrar o marxismo à realidade chinesa, evitando cometer os mesmos erros que o partido soviético cometeu no passado, devido o seu completo abandono da teoria marxista; o segundo, por outro lado, se distanciou paulatinamente do marxismo e capitulou diante da ofensiva ideológica promovida pelos países capitalistas. Porém, é inegável que o Partido Comunista da China aprendeu muitas coisas com a experiência soviética, de modo que é correto afirmar que entre ambos os partidos existiam “grandes semelhanças”, sendo a experiência soviética, desde o princípio, fonte de inspiração e estudo para os comunistas chineses. De acordo com Zhou Xincheng:
Inicialmente, nós não tínhamos experiência em como construir o socialismo. Nós apenas podíamos aprender da União Soviética, que possuía décadas de experiência na construção socialista. A experiência básica da construção socialista na União Soviética deveria ser estudada, incluindo sua adesão política à liderança do Partido Comunista e a ditadura do proletariado; adesão econômica ao sistema de propriedade pública dos meios de produção materiais, distribuição de acordo com o trabalho, eliminação da exploração e eliminação da polarização; adesão ideológica ao Marxismo como guia, etc. Isso reflete os princípios básicos do socialismo científico, sua lei comum, possuindo valor universal. Portanto, nós sempre consideramos nossa causa socialista como uma continuação da Revolução de Outubro. [27]
Até hoje muitos elementos vigentes no sistema político chinês guardam grandes semelhanças com o modelo que foi estabelecido gradualmente na União Soviética no final dos anos 20 e início dos anos 30. O modelo político que estabelece a direção do Partido Comunista sobre as atividades do Estado e da sociedade — sistema que, hoje em dia, até alguns teóricos burgueses simpáticos à China tendem a defender — é uma influência direta do sistema político de tipo soviético, ainda que entre estes existam algumas pequenas diferenças (p.ex: no caso chinês existe ao mesmo tempo um sistema de consulta política que permite a existência de outros partidos). Mesmo que talvez essa não seja sua intenção, na prática Martin Jacques acaba estabelecendo uma oposição entre dois fenômenos históricos umbilicalmente conectados — a revolução russa e chinesa — diminuindo a posição do marxismo-leninismo e ocultando a ligação direta que o processo de construção do socialismo com características chinesas possui com a luta do proletariado internacional e também com a própria revolução russa, em nome da ideia de que o Partido Comunista da China “é diferente de todos os outros partidos do mundo”.
Ainda sobre a relação entre o socialismo com características chinesas e o socialismo soviético, é interessante notar que Xi Jinping, ao analisar as várias etapas do desenvolvimento da história do pensamento e do movimento socialista, divide-o em seis etapas, citando precisamente como parte integrante dessas etapas a experiência de Lenin e a sua liderança na Revolução de Outubro, bem como a formação gradual do sistema soviético já no período de Stálin (respectivamente a terceira e quarta etapa do desenvolvimento da história do socialismo). Ou seja, Xi Jinping ressalta como parte integrante do desenvolvimento do pensamento socialista — na qual, obviamente, insere-se o socialismo com características chinesas — a experiência de construção do socialismo na Rússia, desde a vitória da Revolução de Outubro até a formação do sistema soviético com a fundação e a construção do socialismo na União Soviética, experiência esta dirigida pelo Partido Comunista da União Soviética.
Martin Jacques, seguindo uma tendência que desfruta de bastante popularidade nos países ocidentais, busca explicar o desenvolvimento chinês apenas nos marcos da complexidade daquela civilização, negando o elemento básico e definidor que fornece legitimação ideológica para a sustentação discursiva do sistema político do país, a saber, a ideologia do marxismo-leninismo, que é de onde o Partido Comunista da China tira inspiração teórica e ideológica para colocar adiante a construção econômica, levando em consideração tudo aquilo de correto e científico foi acumulado pelo movimento socialista ao longo de sua história (incluindo a experiência histórica iniciada com a Revolução de Outubro). Tal é a maneira correta de colocar o problema entre as semelhanças e diferenças entre o Partido Comunista da China e o Partido Comunista da União Soviética. Obviamente, como deixamos claro ao longo do artigo, a relação do partido e da sociedade chinesa com o marxismo não é algo isento de contradições, de modo que reconhecemos a pressão que as ideologias burguesas exercem na formulação de várias políticas econômicas no país. Também reconhecemos que várias ideias que respaldam as posições de Martin Jacques possuem uma grande influência dentro da China. No entanto, a exemplo de como fazem muitos intelectuais marxistas na China, tal fenômeno precisa ser observado de maneira critica, para que assim as posições do marxismo possam ser sempre reafirmadas e fortalecidas.
Notas
[1] Deng Xiaoping 邓小平. “Gao zichan jieji ziyou hua jiushi zou ziben zhuyi daolu 搞资产阶级自由化就是走资本主义道路 [Engajar-se na liberalização burguesa é tomar o caminho do capitalismo]”, Dengxiaoping wenxuan, v.3, Renmin chuban she 人民出版社,2008, pg.123.
[2] Partido Comunista da China. Resolução Sobre Certas Questões Históricas na História de Nosso Partido desde a Fundação da República Popular da China — Adotada pela pela Sexta Sessão Plenária do Décimo Primeiro Comitê Central do Partido Comunista da China, 1981. Acessado em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/1981/06/27.html
[3] Deng Xiaoping 邓小平. “Women youxinxin ba zhongguo de shijian hao chengji 我们有信心把中国的事情做得更好 [Estamos confiantes que podemos lidar bem com os assuntos da China]”, Dengxiaoping wenxuan, Renmin chubanshe 人民出版社,2008,pg.327
[4] Mao Tsetung. On the Correct Handling of Contradictions Among the People: Selected Readings from the Works of Mao Tsetung, Foreign Language Press, 1971, pg.
[5] Jiang Zemin 江泽民. “Zai jinian zhongguo gongchandang chengli qishiba zhounian zuotan hui shang de jianghua 在纪念中国共产党成立七十八周年座谈会上的讲话 [Discurso em comemoração do 78º aniversário de fundação do Partido Comunista da China]”, 1997. Acessado em: http://www.peopledaily.com.cn/item/ldhd/Jiangzm/1999/jianghua/jh0007.html
[6] Xi Jinping 习近平. “Ba xuanchuan sixiang gongzuo zuo de geng hao 把宣传思想工作做得更好 [Fazer melhor o trabalho ideológico e de propaganda]”, Lun jianchi dang yiqie gongzuo de lingdao 论坚持党一切工作的领导, Zhongyang wenxian chuban she 中央文献出版社, 2019, pg. 23.
[7] Zhou Xincheng 周新城. “Guandu zhongguo tese shehui zhuyi de ruogan lilun wenti 关于中国特色社会主义的若干理论问题 [Sobre alguns problemas teóricos do socialismo com características chinesas]”, Jingji ribao chubanshe 经济日报出版社,2015, pg. 357.
[8] Wang Qishan 王崎上. “Kaiqi xin shidai, ta shang xin zhengcheng 开启新时代,踏上新征程 [Começando uma nova era e embarcando em uma nova jornada]”, Renmin Ribao 人民日报, 2017, 7 de novembro de 2017. Acessado em: http://www.xinhuanet.com//2017-11/07/c_1121915946.htm
[9] Chen Yun 陈云. “Bixu jiuzheng hushi jingshen wenming jianshe de xianxiang 必须纠正忽视精神文明建设的现象 [Devemos corrigir a tendência de negligenciar o estabelecimento da civilização espiritual]”, Chenyun Wenxuan 陈云文选, v.3, Renmin chubanshe, 2015, pg. 354.
[10] David M. Kotz 大卫·科茨. “Sulian jieti yuanyin shi jingying jituan zhuzhang ziben zhuyi 苏联解体原因是精英集团主张资本主义 [A razão para o colapso da União Soviética foi que grupos elitistas defendiam o capitalismo]”, Zhongguo jingji wang 中国经济网, 2013. Acessado em: http://www.wyzxwk.com/Article/lishi/2013/09/306710.html
[11] Xi Jinping 习近平. “Guanyu jianchi he fazhan zhongguo tese shehui zhuyi de ji ge wenti 关于坚持和发展中国特色社会主义的几个问题 [Algumas questões sobre manter e desenvolver o socialismo com características chinesas]”, Qiushi 求实, n.7, 2009. Acessado em: http://www.qstheory.cn/dukan/qs/2019-03/31/c_1124302776.htm
[12] Mao Tsé-tung. Speech At The Tenth Plenum Of The Eighth Central Committee, 1962. Acessado em: https://www.marxists.org/reference/archive/mao/selected-works/volume-8/mswv8_63.htm
[13] Liang Zhu 梁柱. “Mozedong fanfa sixiang yong bu tuishai 毛泽东反腐思想永不褪色 [O pensamento de Mao Zedong sobre a corrupção nunca irá se dissipar]”, Zhongguo shehui kexue bao 中国社会科学报, 2014. Acessado em: http://dangshi.people.com.cn/n/2014/0116/c85037-24142270.html
[14] Deng Xiaoping 邓小平. “Jianchi shehui zhuyi, fangzhi heping yanbian 坚持社会主义,防止和平演变 [Aderir ao socialismo e prevenir a evolução pacífica]”, Dengxiaoping wenxuan 邓小平文选, v.3, Renmin chubanshe 人民出版社, 2008, pg. 344.
[15] Liu Guoguang 刘国光. “Zhongguo shehuizhuyi zhengzhi jingjixue de ruogan wenti 中国社会主义政治经济学的若干问题 [Alguns problemas da economia política do socialismo com características chinesas]”, Jinan chubanshe 济南出版社, 2017, pg. 33.
[16] Gong Yun 龚云. “Zai lishi xuwu zhuyi zhong jianchi lishi weiwu zhuyi 在历史虚无主义中坚持历史唯物主义 [Criticar o niilismo histórico persistindo no materialismo histórico]”. Acessado em: http://www.wyzxwk.com/Article/yulun/2016/07/367869.html
[17] Xi Jinping 习近平. “Zai dang shu xuexi jiaoyu dongyuan dahui shang de jianghua 在党史学习教育动员大会上的讲话 [Discurso na conferência de mobilização e estudo da história do Partido]”, 2021. Acessado em: https://www.ccps.gov.cn/xtt/202103/t20210331_148208.shtml
[18] Xi Jinping 习近平. “Zai zhexue shehui kexue gongzuo zuotan zhong de sikao 在哲学社会科学工作座谈会上的讲话 [Discurso no seminário de trabalhadores de filosofia e ciências sociais]”, 2016. Acessado em: http://www.xinhuanet.com/politics/2016-05/18/c_1118891128_2.htm
[19] Xi Jinping 习近平. “Ba xuanchuan sixiang gongzuo zuo de geng hao 把宣传思想工作做得更好 [Fazer melhor o trabalho ideológico e de propaganda]”, Lun jianchi dang yiqie gongzuo de lingdao 论坚持党一切工作的领导, Zhongyang wenxian chuban she 中央文献出版社, 2019, pg. 23.
[20] Wu Xuangong 吴宣恭. “Yunyong lishi weiwuzhuyi jianshe zhongguo tese shehui zhuyi zhengzhi jingji xue 运用历史唯物主义建设中国特色社会主义政治经济学 [Usar o materialismo histórico para construir a economia política do socialismo com características chinesas]”, Fujian shifan daxuel xuebao (zhexue shehui kexue ban) 福建师范大学学报 ( 哲学社会科学版), 2017.
[21] Ibidem.
[22] Liu Guoguang 刘国光. “Zhongguo shehuizhuyi zhengzhi jingjixue de ruogan wenti 中国社会主义政治经济学的若干问题 [Alguns problemas da economia política do socialismo com características chinesas]”, Jinan chubanshe 济南出版社, 2017, pg. 33.
[23] Jiang Zemin 江泽民. “Jiāngzémín zài qìngzhù jiàndǎng qishi zhōunián dàhuì shàng de jiǎnghuà 江泽民在庆祝建党70周年大会上的讲话 [Discurso na celebração do 70º aniversário da fundação do partido]”, 1991. Acessado em: http://www.qunzh.com/pub/jsqzw/xxzt/jd95zn/zyls/201606/t20160601_20990.html
[24] Discurso de Xi Jinping na Escola do Comitê Central do Partido Comunista da China. 17 de fevereiro de 2014. Citado em Zhou Xincheng 周新城,”Jianchi jiqiao jiben yuanli fenxi shehui wenti坚持运用马克思主义基本原理分析社会经济问题 [Aderir no uso dos princípios do marxismo na investigação de problemas econômicos e sociais]”, Jingji ribao chuban she 经济日报出版社, 2016, pg.228.
[25] Martin Jacques. Why there has been an overwhelming failure to understand CPC in West, Global Times, 6 de abril de 2021. Acessado em: https://www.globaltimes.cn/page/202104/1220314.shtml
[26] Hou Weimin 侯为民. “Pipan yu chuangxin — Zhou xincheng jiaoshou jingji sixiang sumiao 批判与创新 — — 周新城教授经济思想素描 [Critica e Inovação: um esboço do pensamento econômico do Professor Zhou Xincheng]”,Guanli xue kan 管理学刊, 2014.
[27] Zhou Xincheng 周新城. “Jianguo qishi nian shi qingzhu shehui zhuyi lishi fazhan, jinian zhonghua renmin gongheguo chengli qishi zhounián 建国70年是庆祝社会主义历史发展, 纪念中华人民共和国成立70周年. Acessado em: http://www.kunlunce.com/llyj/fl1/2019-05-17/133451.html

(*) Gabriel Martinez é cientista político , desenvolve estudos de pós-graduação na China

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