Opinião

Política e religião, desencontros e encontros na ação

11/05/2016

Este texto conclui uma abordagem do modo como se manifestou a presença do elemento religioso na questão política – no desenrolar da tentativa de golpe contra a Presidente eleita Dilma Rousseff – a partir dos comportamentos dos atores políticos, tanto a nível individual como institucional, pela utilização do elemento religioso como parte do discurso político[1].

Alexandre Branco Weffort*, de Portugal, para o Resistência

A primeira análise feita, focada no destempero de uma jurista (no artigo “Religião e laicismo na crise política brasileira – o golpe pentecostal”) revelou-se incompleta, nomeadamente ao qualificar aquele comportamento como ‘destempero’, havendo ainda equacionar a hipótese de tratar-se de um gesto pensado, de condicionamento ao nível subconsciente, dirigido ao grupo que iria desempenhar um papel político imediato (os deputados federais) para assim os vincular ao processo subsequente.

Que o Congresso de Deputados se havia transformado num circo, no primeiro ato de votação do relatório conducente ao impeachment, é algo evidente e reconhecido até a nível internacional. Já o recente episódio de recusa do presidente do Senado em acatar a declaração de nulidade da votação do passado dia 17 de abril, depois de assumida pelo presidente em exercício da Câmara de Deputados, indicia até onde vão (ou de onde partem) as ramificações do processo.

A análise passou pela crítica aos comportamentos observados, da intervenção política produzida por grupo religiosos, nomeadamente pentecostal, na mobilização de vastas camadas da população brasileira contra o governo federal, onde os episódios em torno do processo de impeachment se tornaram ilustrativos dessa manipulação e, também, dos mecanismos de condicionamento produzidos e conduzidos pela grande mídia e refletidos também nas redes sociais, os expandiu acriticamente[2].

Tem-se dado alguma atenção aos fenômenos de psicologia social e ao modo como a massa é manipulada. Há estudos sobre como o facebook e outras redes funcionam na estimulação de movimentos pseudo-espontâneos (alguns foram promovidos pelos serviços militares norte-americanos, com centenas de milhares de indivíduos servindo de cobaias, sem o saber). Já o problema da religião não tem obtido, também no campo marxista, resposta adequada: ou se recusa toda expressão de religiosidade em nome de uma ‘verdade cristalizada’ ou tudo se aceita, em nome da liberdade de escolha. São posições extremadas que acabam por ignorar a dialética do fenômeno religioso enquanto elemento dinâmico da consciência social.

Voltando à questão inicial, que motivou esta análise, o golpe político (porque ocorre no âmbito das instâncias representativas parlamentares) apresenta aquele condimento de âmbito religioso que o caracteriza enquanto ato produzido ao nível da superestrutura ideológica, pese embora o motor do processo ser econômico, onde o capitalismo transnacional desempenha um papel evidente. E relaciona-se com o modo como os interesses de classe se manifestam internamente no Brasil.

Começa agora a emergir outro plano mais profundo, com outros níveis e atores institucionais, onde o poder judiciário tem revelado alguma permeabilidade aos interesses políticos e de classe, enredando na complexa teia da corrupção protagonistas políticos de todas as áreas e fazendo do combate à corrupção um instrumento de intervenção política utilizado de forma discricionária e parcial. Os órgãos máximos do poder judiciário (como o STF) acabam por refletir também as contradições da vida política e social e os interesses de grupo instituídos, onde a gestão do timming processual constitui um indício expressivo daquela permeabilidade.

O controle de parte substancial da comunicação social por organizações religiosas proporcionou a estas um novo protagonismo e novas armas de combate ideológico, condição que tem vindo a ser construída nas últimas décadas. A manifestação das massas populares não se realiza, em regra, de forma espontânea, antes correspondendo a um processo onde os interesses de classe se jogam, mesmo que, por vezes, de forma não consciente. Enquanto os movimentos sociais constroem a sua dinâmica de forma paulatina (lenta, condicionada aos recursos de comunicação existentes), mas consistente (porque estabelecidas no quadro de relações humanas concretas), os movimentos ditos ‘espontâneos’, baseados na rapidez da comunicação virtual e em rede, revelam tanto de velocidade como de inconsistência.

Esse foi um dos papéis desempenhados por algumas estruturas religiosas: a movimentação de massas que, manifestando-se publicamente, dessem respaldo a objetivos políticos objetivamente antipopulares. Nesse processo, o valor midiático da “manifestação espontânea das massas” (como é ingenuamente classificado até por cientistas sociais), foi guindado a critério suficiente de democraticidade de qualquer evento. E podemos ainda assinalar uma correlação entre este processo de manipulação e a natureza transcendente do discurso religioso e a sua vinculação emocional: ambos procuram elidir a consciência de classe.

Sobre esta questão, é esclarecedora a reflexão proposta por Álvaro Cunhal, dirigente histórico do PCP, em texto publicado em 1935, sob o título “Queremos! Queremos!”:

“As massas, agindo por impulsos sentimentais, agem sem controlo sobre si mesmas: perdem a capacidade de avaliar os possíveis efeitos da sua atitude; têm um fim “inconsciente”. (…) Não negamos que desses movimentos não seja a história pródiga em heroicos exemplos; nem que deles tenham surgido não poucos golpes decisivos em instituições retardadas. (…) A vontade geral (vontade de um grupo) é afinal a resultante necessária da existência de antagonismos de interesse. Se a orientação geral fosse “una” (total), se os seus elementos constitutivos fossem vontades individuais do mesmo conteúdo a expressão “vontade geral” perderia o seu significado: identificar-se-ia com as vontades individuais.” [3]

O mecanismo de manipulação midiática, pela promoção de movimentações de massas pseudo-espontâneas que, dessa forma, avalizam agendas políticas ocultas, recorre de forma sistemática ao discurso (e ao potencial simbólico) religioso. A eficácia do processo vai radicar-se na dimensão cultural da religião, na sua presença envolvente em todas as esferas da vida, proporcionando respostas que são mais facilmente aceites e assimiladas pela generalidade da população.

O discurso religioso é, por definição, ideológico. Engels assinalava que a“ideologia é um processo que, com efeito, é completado com consciência pelo chamado pensador, mas com uma consciência falsa. As forças impulsionadoras propriamente ditas que o movem permanecem-lhe desconhecidas; se não, não seria, precisamente, processo ideológico nenhum”[4]. Marx, por seu lado, assinalava que a “alienação religiosa como tal, ocorre somente no campo da consciência, na vida interior do homem, mas a alienação econômica é a da vida real (…)”[5].

Colocando na ação concreta a verdadeira expressão da consciência social, Marx sublinha o fato de, na sociedade em que vivemos, os homens serem dominados pelas condições econômicas:

“Dum modo geral, o reflexo religioso do mundo real só poderá desaparecer quando as condições do trabalho e da vida prática apresentarem ao homem relações transparentes e racionais com os seus semelhantes e com a natureza. A vida social cuja base é formada pela produção material e pelas relações que ela implica só se libertará da nuvem mística que a envolve, no momento em que ela se apresente como o produto de homens livremente associados, agindo conscientemente [,segundo um plano,] e senhores do seu próprio movimento social.”[6]

A ‘verdade’ religiosa não é oponível, dada a sua natureza metafórica, a outras ‘verdades’ (como serão a filosófica e a científica). Esse traço absoluto do discurso religioso estará na raiz do sectarismo que, voluntária ou involuntariamente, a religião promove. Embora trazido ao confronto ideológico, o discurso religioso não permite uma confrontação imediata com outras formas ideológicas.

Mas, é possível, também pela natureza metafórica daquele discurso, encontrar pontos de contato e diálogo, propiciadores da união na ação em torno de objetivos sociais comuns, na construção de movimentos progressivamente mais conscientes e, porque mais conscientes, mais progressivos. Será, em face das condições hoje observadas no Brasil, à véspera da consumação de um golpe político antidemocrático, uma tarefa política premente.

Em 1947, em relação à realidade portuguesa, Álvaro Cunhal dizia: «… As convicções religiosas, por si só, não são susceptíveis de afastar os homens na realização de um programa social e político,… comunistas e católicos podem e devem unir-se em defesa dos seus anseios comuns…»[7]. Na atualidade e no caso brasileiro, essa possibilidade de união na ação poderá ser estendida a outras tendências religiosas, em face de uma análise específica da realidade concreta da sociedade brasileira.

Expôs-se a análise de algumas questões da realidade contemporânea brasileira, vista a partir de Portugal, recorrendo a textos clássicos dos fundadores do marxismo como instrumentos de indagação. Cabe, na conclusão, reter o que indicou Álvaro Cunhal, desta feita em 1995, em entrevista concedida no Brasil, acerca da teoria e sua relação com a prática política:

“Não se pode substituir a análise das novas realidades pela citação acrítica dos textos que respondiam a realidades diferentes e distantes, e tomadas como “princípios” de validade intemporal. (…) A teoria tem um desenvolvimento próprio, produto da inteligência de sucessivas gerações. Mas nasce da realidade e a ela responde (…) Mas, em todas e em cada uma dessas áreas do conhecimento e da teoria, a análise da realidade, a resposta teórica e o desenvolvimento da ação não devem estar condicionados à ideia de que já se é senhor de verdades eternas. A criatividade é um elemento intrigante da teoria revolucionária dos comunistas”[8].

O quadro de confronto que se observa hoje na situação política brasileira apresenta contradições – como as assinaladas no que refere à esfera da religião – que importa reconhecer, e conhecer de forma aprofundada, encontrando os meios necessários ao envolvimento de todos os setores progressistas (inclusive grupos religiosos) na defesa da democracia, pela unidade na ação no exercício da democracia participativa.

* Alexandre Weffort, Professor, Mestre em Ciência das Religiões e Doutorando em Comunicação e Cultura na Universidade do Minho (Portugal)

[1] Os primeiros passos foram dados através de dois textos publicados em: http://www.resistencia.cc/religiao-e-laicismo-na-crise-politica-brasileira-o-golpe-pentecostal/ e http://www.resistencia.cc/em-torno-do-valor-civilizacional-do-laicismo/

[2] Aquela função multiplicadora de conteúdos, feita de forma acrítica, vinculada sobretudo à dimensão emocional do discurso, será um dos traços que importa investigar para uma efetiva apropriação desses mecanismos de comunicação descentralizada pelos movimentos populares, no sentido de uma emancipação em relação ao domínio ideológico exercido pela grande mídia.

[3] Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas, tomo I, Lisboa, 2007, Edições Avante!, pp. 5-6.

[4] Ver https://www.marxists.org/portugues/marx/1893/07/14.htm .

[5] Ver https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm .

[6] Ver https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/vol1cap01.htm#topp .

[7] Álvaro Cunhal, apud Carlos Gonçalves “A encíclica Laudato Si’ – Contributos para uma reflexão”, acedida em http://omilitante.pcp.pt/pt/342/Tema/1057/A-enc%C3%ADclica-Laudato-Si’—Contributos-para-uma-reflexão.htm#ref1 .

[8] Ver http://www.zereinaldo.blog.br/index.php/621-entrevista-com-álvaro-cunhal,-um-documento-para-a-história .

Compartilhe:

Leia também