Conjuntura internacional

A Bielorrússia e a verdade. E o Brasil com isto? Um olhar da Itália

04/09/2020

Por Marco De Liso (*)

Estamos no fim do verão de 2020, naqueles dias em que as informações tradicionalmente monótonas e ordinárias de meu país, a Itália, alterna notícias de diferentes graus da realidade sobre a pandemia de covid-19 com entrevistas e opiniões alarmadas e alarmantes sobre as grandes mobilizações que se seguiram à contestada, mas avassaladora, vitória eleitoral de Alexander Lukashenko na Bielorrússia. A narrativa proposta é da última ditadura da Europa, e da luta de corajosos cidadãos contra um autocrata violento e apoiado por personagens de moralidade duvidosa, por exemplo o presidente da vizinha Rússia. Auspicia-se um sucesso das forças democráticas e uma união das pessoas de bem do mundo inteiro para apoiar este êxito. Todos os progressistas de meu país apoiam sem reservas a suposta causa do povo bielorrusso. Eu também apoio as aspirações democráticas do povo bielorrusso, mas existem algumas considerações que considero que merecem ser feitas.

Uma coisa que se aprende morando longe por um tempo suficiente é o caráter totalmente ilusório de qualquer suposta “transparência” da informação. Nesta época de globalização as mercadorias circulam, e um microchip ou uma batedeira são o que prometem ser, um microchip e uma batedeira, vindas da China, da África do Sul ou da Holanda. Mas as informações, com a exceção de algumas factualidades muito materiais e verificáveis (hoje é mais complicado que ontem afirmar, por exemplo, que uma pessoa morta esteja viva, ou que uma certa instalação militar não exista enquanto é visível por um satélite), nascem interpretadas. E quanto mais a realidade se afasta das possibilidades ou simplesmente dos hábitos de verificação do receptor da informação, tanto mais a interpretação se transforma em distorção descarada e interessada. Até ao ponto que quem hoje quisesse ter uma ideia do mundo teria que concentrar-se em compreender a forma e a direção dos espelhos côncavos e convexos que desviam e deformam os dados da realidade para poder, na base da imagem ilusória final, tentar, consciente da margem de erro, adivinhar as caraterísticas do impulso inicial, o que nós chamaríamos de “fato”, ou conjunto de fatos. Estes espelhos são a geopolítica, as relações de classe, as geografias do poder e da dominação, sobre homens e sobre os recursos.

Eu já vivi muito tempo na América Latina. Nos últimos anos no Brasil foi executado um plano coordenado para derrubar o consenso de um partido de esquerda moderada como o Partido dos Trabalhadores, através de ataques concêntricos que envolveram os meios de comunicação, as estruturas judiciarias e todos os níveis de uma classe política extremamente corrupta e mais ainda corruptível. Os fatos são obscuros apenas para quem não queira enxergá-los. O segundo mandado da Presidente Rousseff foi interrompido depois de dois anos através de um processo de impeachment juridicamente abominável, que se sustentou apenas sobre a fidelidade bovina da maioria dos parlamentares, em grande parte oportunistas de baixíssimo nível que foram convencidos, com razão, que o vento tivesse estavelmente mudado de direção. Foi desta forma deposta com infâmia uma figura que realmente parecia fora de lugar, por coerência moral, dentro de uma classe política cuja inépcia e inconsistência de princípios resulta difícil de digerir até para nos, os italianos, que faz tempo estamos acostumados a não ter estima de nossos dirigentes.

Os quadros políticos do Partido dos Trabalhadores sofreram uma real persecução judiciária, cujo emblema é evidentemente o inadmissível e injustificável processo farsa do Presidente Lula, que passou um ano e meio preso nas dependências da Polícia Federal de Curitiba, e que está progressivamente sendo revelado e corrigido do ponto de vista do processo penal pelo mesmo disputável sistema judiciário brasileiro, sem que isto provoque consequências políticas, agora que as forças da reação consideram a batalha como ganha.

Tudo isto aconteceu mantendo um respeito aparente, constantemente reivindicado, às formalidades democráticas, ao nível necessário para resultar aceitável aos olhos de uma muito tolerante “opinião pública internacional” ocidental. Lembro pessoalmente a dor que senti poucos meses depois destes eventos vendo o maior representante político de meu país, o então Presidente del Consiglio (equivalente ao chefe de governo), Matteo Renzi, visitando oficialmente e apertando a mão do golpista Michel Temer, conferindo legitimidade ulterior a um processo reacionário que infringiu a única real ocasião de progresso e independência do maior país da América Latina, entregando-o, espero provisoriamente, a seu destino secular de irrelevância internacional, submissão, sofrimento e injustiça para seu povo.

Mas para “nós”, italianos, sendo que estávamos falando de comunicação, o que aconteceu no Brasil? Nada de estranho, em boa substância, pelo menos até o momento em que a chegada de uma figura folclórica, mas perigosamente defensora de uma pauta contra a democracia e os direitos humanos,  como Bolsonaro – o único caminho que as forças reacionárias encontraram para evitar o retorno do PT no poder – tornou um pouco evidente demais, até para a nada exigente informação internacional globalizada, a essência daquilo que as instituições brasileiras chegaram a ser. Todavia basta pouco, talvez uma máscara exibida em alguma ocasião oficial, para que tudo volte entre os limites do tolerável. E, no entanto, o povo literalmente morre.

Na Bolívia ao golpe não precisou dar-se uma aparência democrática. Ali a violência foi evidente, com a polícia em cima dos tetos, dirigentes e governadores do Movimento ao Socialismo humilhados ou linchados, perseguidos até sua casa por milícias armadas fascistas, o Presidente eleito Evo Morales em exílio para salvar sua própria vida. A multidão de indígenas nas estradas da Bolívia inteira, parados só pela violência do exército que deixou muitos mortos inocentes na rua para esclarecer que a alternativa ao golpe de estado teria sido a guerra civil, ou melhor, o massacre. Tudo isto foi desencadeado por uma informativa da Organização dos Estados Americanos, hegemonizada pelos Estados Unidos, que dava a entender a possibilidade de ocorrência de uma fraude eleitoral.

Como na Bielorrússia.

Hoje estudos independentes contestam com consistentes margens de segurança as conclusões daquele relatório, que não eram, evidentemente, conclusões, e sim alusões jogadas na cena política local no momento oportuno e com a finalidade específica de ser a faísca ou simplesmente o sinal verde para um processo golpista que não podia ter nada de improvisado.

A sucessiva ‘volta à normalidade democrática’ lembra a figura de um assassino furioso que troca de roupa para apresentar-se a um evento social sem exibir os vestidos encharcados pelo sangue das vítimas. Os funcionários no portão daquele evento são os jornalistas, os administradores de nossa informação globalizada que precisam de pouco, muito pouco mesmo, apenas de uma roupa decente e do mínimo de respeito formal, para fazer com que seja concedido aos golpistas, aos fascistas ou aos assassinos o acesso aos círculos das “pessoas de bem”, à condição que os atos desferidos, nos quais estes impostores ou criminosos se mancharam de sangue e desonra, tenham sido cometidos em nome e por conta da parte certa.

Aqui está o ponto.

Não é fácil conhecer a verdade. Contra as aparências, contra tudo o que fomos durante os últimos anos acostumados a considerar como obvio, no campo da informação a terra, os mares, os quilômetros e as fronteiras retomam sua consistência e sua materialidade. Cada intrometido sabe que é às vezes difícil, mas raramente impossível saber o que está acontecendo na casa do vizinho. O acesso à informação no âmbito do que está perto de nosso alcance pode ser dificultado quanto mais nos aproximamos a pessoas, lugares, fatos importantes nas dinâmicas do domínio, mas existe uma dialética, onde quem persegue a transparência tem recursos e estratégias para atuar. É uma luta complexa entre quem quer esconder e quem quer revelar, mas na nossa realidade, de cidadãos italianos e europeus da terceira década do século vinte e um, acreditarem que o essencial esteja sempre e em qualquer caso invisível aos olhos significa ceder às formas de delírio paranoide que têm hoje consistência real, mas que não são o objeto deste texto. Vamos repetir: é uma dialética. Existe, sim, uma evolução, existem conquistas objetivas, históricas, culturais que tornam mais complicada, mais sofisticada talvez, mas com certeza em certa medida limitada a distorção da realidade que minorias poderosas têm interesse em propor ao corpo majoritário da sociedade.

 A sua vez, esquecer a existência e a capacidade de ação destas forças leva a erros crassos de interpretação. Cada quilômetro, cada barreira física e cultural a mais é uma arma na mão de quem tem interesse e poder para negar-nos o acesso à verdade. Tenho que fazer de novo referência à minha biografia: foi um certo tipo de trauma cultural para mim, constatar, praticamente como testemunho direto, a facilidade extrema com que o golpe brasileiro de 2016, uma ferida mortal na democracia do maior pais sul-americano, de uma gravidade tão profunda que acaba representando historicamente a conclusão – no sentido da falência – do processo de redemocratização inaugurado pela Constituição de 1988, pudesse ser descrito na Itália em termos totalmente normalizadores, até a negação substancial de qualquer relevância. Para os meios de informação, para os atores políticos, diplomáticos e institucionais no Brasil tudo ia, e vai, essencialmente bem. O cidadão comum pode eventualmente sorrir lendo dos comportamentos anedóticos de um presidente pitoresco originário da cidade italiana de Lucca, que se porta como um Salvini (líder  reacionário do partido ‘Lega’) sem barba, um pouco mais burro e mal-educado.

Não é fácil conhecer a verdade. Mas é impossível até aproximar-se dela sem perceber que os Estados Unidos da América estão executando uma estratégia poderosa, coordenada e planejada, de caráter extremamente agressivo, para recuperar o poder que consideram ter perdido em diferentes partes do tabuleiro geopolítico internacional. A América Latina é um ponto de observação privilegiado. É uma região cujo desejo de autonomia e independência representa aos olhos dos norte-americanos uma aberração histórica. Não é possível entender nada, nada, nada do que acontece, por exemplo no Brasil e na Bolívia sem partir deste dado, e da consciência da enorme capacidade de intervenção mantida por uma potência, ainda a maior do planeta, que quando decide atuar fora das suas fronteiras não tem algum escrúpulo nem limite, nem preocupação democrática ou moral e apresenta ao contrário uma tradição de longa duração de afirmação violenta de seus interesses.

É preciso deixar muito claro que neste caso não se trata de uma eventual contraposição entre pontos de vista, mas da escolha entre consciência e inconsciência da realidade. Um diferente ponto de vista seria sustentar, por exemplo que os Estados Unidos estão provocando a devastação da democracia e das políticas sociais dos estados sul-americanos porque têm que afirmar sua dominação, que seria por definição melhor  que a chinesa, ou simplesmente da hipótese de uma maior autonomia dos povos e dos outros estados. Uma posição difícil de se defender, mas que leva em conta a realidade. Mas o que chega ao nosso debate público de cidadãos europeus “informados” não é a realidade. É uma sua versão edulcorada, fantasiosa, insustentável. Se discutimos, discutimos sobre nada, e esta é infelizmente nossa verdade cotidiana.

A Bielorrússia está longe. Quase não existe. Entender quem está operando realmente para defender os interesses de seu povo, quem está mentindo, quem está sendo manipulado, não me parece fácil. Como pessoa avisada sei que governos e regimes de muito longa duração têm que ter caraterísticas muito especiais para conseguir não se converter em fulcro de sistemas parasitários de criação ou reprodução de privilégios. Cuba, por exemplo representa uma exceção fúlgida, única talvez, onde mobilização popular, intensidade moral, consciência de comunidade de destino e necessidade de resistência a um poder extremamente próximo e de força esmagadora impediram substancialmente a transformação em mera força de opressão de um estado que por metade de sua história quis-se definir socialista em um mundo em que o socialismo nem devia mais, oficialmente, existir.

Não tenho quase a mínima ideia do que aconteça a cada dia na Bielorrússia, como é a vida cotidiana, as escolas, os hospitais, a circulação das ideias, a igualdade ou desigualdade dos cidadãos, as possibilidades de lazer, a justiça ou a corrupção da sociedade e da burocracia estatal. Considero altamente provável que quase nenhuma das pessoas que leram este texto, originariamente em língua italiana, saiba muito mais do que eu, além dos estereótipos jornalísticos sobre o “último ditador” ou da propaganda interessada filo americana, que como dizia um músico italiano de outra época “canta canções que são como cantar sobre nada”. Mas tenho plena consciência sobre a imensa dificuldade que encontraria um cidadão italiano hoje em dia para obter deste país uma informação verídica. E isto não principalmente por causa da escassa transparência da administração bielorrussa. Por causa da geopolítica. Dos espelhos, côncavos e convexos.

Eu não sei o que está acontecendo, na Bielorrússia, mas sei como pelo menos uma das partes está me enganando, de que forma, porque, em qual direção. Não sei se Lukashenko é uma boa pessoa, um governante iluminado, um defensor da autodeterminação de seu povo, ou um corrupto, um autocrata, talvez, ou um assassino. Mas conheço, porque está na minha casa e esta sim esteve durante a minha vida inteira no alcance de meu olhar, a Besta que quer me convencer que a Bielorrússia é um erro da geografia, da política e da história, que precisa-se revirá-la que depois tudo irá bem. Quem está me dizendo isto através dos milhares de amplificadores de maior, ou menor, ou nenhum prestígio presentes nos jornais, nas televisões, na rede e nos cantos das ruas das cidades do meu país é a voz da geopolítica, dos dominadores desta semiperiferia do Império onde acabei nascendo e vivendo boa parte de minha vida.

Um Império a quem não reconheço de pertencer-me e a quem principalmente não reconheço uma legitimidade moral ou política maior daquele de seus atuais antagonistas. Por tudo isto, ao contrário talvez de vocês, declaro que não sei a verdade sobre a Bielorrússia; não vou, todavia, exultar caso seu governo caia, porque sei muito bem, de outro lado, quem está trabalhando para este resultado, com quais finalidades, e sei que não está entre elas o bem-estar do povo daquela terra.

(*) Socialista, ex-ator, empresário e sempre filósofo

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