Cuba

Carta Magna da transformação em Cuba

03/08/2018

“Cuba passará a ser um Estado socialista de direito”, um conceito novo. Em matéria econômica, são incorporadas outras definições de propriedade diferentes da estatal. O presidente não poderá ultrapassar dois mandatos consecutivos.

Por Gustavo Veiga, em Página/12

Cuba dará para si uma nova Constituição, no mais tardar em novembro. Com seus tempos próprios, sob a reafirmação do modelo socialista, mas com reformas acrescentadas que mudarão bastante o conhecido até agora. Em matéria econômica, a incorporação de outras definições de propriedade diferentes da estatal. A ratificação política de que o presidente não poderá ultrapassar dois mandatos consecutivos de cinco anos cada um. Na ampliação de direitos civis, a incorporação do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Nos fatos, as duas primeiras situações já estão ocorrendo. Contudo, a ilha se rege por uma carta magna de 1976, que o governo precisava atualizar. O projeto já vinha sendo estudado desde 2013 e agora será submetido a uma consulta popular para sua discussão. A lei máxima do Estado passará de 137 artigos a 224. Apenas 11 dos que imperam há 42 anos permanecerão vigentes, serão modificados 113 e eliminados 13.

No dia 22 de julho, o presidente Miguel Díaz Canel definia, diante da Assembleia do Poder Popular, que a reforma será “profunda” porque a Constituição precisava “atualizar-se para que a institucionalidade se fortaleça e com ela o modelo econômico e social”. Em geral, os meios de comunicação puseram o foco em que se suprimirá o conceito de “comunismo” da lei. Interpretaram que, com as mudanças, Cuba renunciaria a desenvolver essa fase superior do socialismo. A resposta a essa inferência é uma só: “o papel guia do Partido Comunista”, conforme será estabelecido pela carta magna – e como Granma fez transcender –, não se modificará. Uma síntese do debatido na Assembleia, e que não tem status de documento oficial, menciona que “o projeto reafirma o caráter socialista de nosso sistema político, econômico e social”.

Resta confirmar a data para a consulta popular, que deverá ser realizada entre 13 de agosto e 15 de novembro. É o requisito prévio para que depois o texto volte à Assembleia e eventualmente se acrescentem, retirem ou modifiquem artigos. Cumprido este passo, a reforma voltará ao poder legislativo para sua análise final.

Cuba confirmou seu cronograma de mudanças em um momento em que recrudesce a ingerência dos Estados Unidos na América Latina. O dado é inegável, ainda que não deveria ser computado como uma fragilidade política. A ilha foi sede do último Foro de São Paulo, a caixa de ressonância de um anti-imperialismo que também cresce. E nas mudanças propostas agora em sua máxima lei – muito mais profundas que as concretizadas em 1978, 1992 e 2002 –, a Assembleia estudou várias constituições, mas sobretudo as da Venezuela, Bolívia e Equador, no continente, e as do Vietnã e China, no restante do mundo.

Também foram levados em conta os antecedentes locais de 1940 e 1959, o ano da Revolução. Cuba atravessou o século XIX com várias constituições mambisas. A primeira intervenção dos Estados Unidos interrompeu a vigência da votada em 1897. Durou apenas um ano. Inclusive, em 1901, o governo da ilha incorporou a emenda Platt em sua carta magna sob pressão dos Estados Unidos. Esta permitia intervir no país vizinho “para a conservação da independência cubana”. Disso já não se fala porque parece pré-histórico. Contudo, condicionou as décadas posteriores e ainda conserva um símbolo muito forte: a base ilegal de Guantánamo, ocupada desde 1898, quando os Estados Unidos declararam guerra à Espanha e invadiram Cuba.

O projeto de constituição finalizou uma tarefa de cinco anos, que Raúl Castro iniciou quando criou um grupo de trabalho, lá por 2013. Não é um texto conjuntural. Articula mudanças em vias de consolidação que não apareciam na lei, como as novas formas de propriedade privada e o reconhecimento do papel do mercado. “Cuba passará a ser um Estado socialista de direito”, um conceito novo. Mas, o que aspira seu presidente Díaz Canel é que, após a consulta popular, se fortaleça “a unidade dos cubanos em torno da Revolução”, conforme afirmou no dia 22 de julho, no Palácio das Convenções. Dois meses antes, no mesmo cenário, havia sido eleito presidente para suceder a Raúl Castro.

Quando interveio na Assembleia, o secretário do Conselho de Estado, Homero Acosta, perguntou-se: “Mudou o modelo socialista cubano? Não mudou em seus princípios. Os conceitos fundamentais de nosso socialismo estão aí… O papel do Partido Comunista, da economia estatal e da propriedade socialista seguem incólumes. Mas, sim, é necessário fazer uma transformação”.

A nova Constituição – destacou o sítio Cubadebate –, “ao definir os diferentes tipos de propriedade que possam coexistir na economia (socialista de todo o povo; cooperativa, mista; das organizações políticas, de massas e sociais; privada e pessoal), reconhece que podem existir outras, assim como que o Estado irá estimular aquelas de caráter mais social”. A nova constituição gerou coincidências incomuns em Cuba e no exterior sobre a incorporação de direitos civis. A principal foi sobre o matrimônio igualitário, já que o texto deixará de dizer “entre um homem e uma mulher” e destacará “entre duas pessoas”.

A Constituição renovada também modificará as autoridades provinciais. Deixarão de existir as assembleias do Poder Popular nas províncias e se estabelecerá o cargo de governador e um conselho a esse nível de Estado. Em matéria de política exterior, Cuba ratificará os princípios com os quais se regeu até hoje e incorporará outros. Entre os novos, a multipolaridade nas relações entre os Estados, mais a proteção e conservação do meio ambiente e a luta contra a mudança climática. E manterá sua habitual “condenação ao imperialismo, ao fascismo, ao colonialismo e neocolonialismo em qualquer uma de suas manifestações”.

A saúde pública como um direito de todas as pessoas e a educação gratuita, “desde a pré-escolar até o ensino superior” continuarão como até agora sob o programa de economia planificada do Estado socialista cubano. Díaz Canel não poderá seguir no governo para além de 2028 e quem o suceder deverá cumprir um requisito que a Constituição destacará: não poderá superar os sessenta anos.

Resistência, com Página 12 e Instituto Humanitas/Unisinos
Tradução do Cepat.

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