Opinião

Diante de mais uma catástrofe, Autoridade Palestina denuncia acordos com Israel e Estados Unidos

20/05/2020

O presidente palestino Mahmoud Abbas denunciou nesta terça-feira (19) a nulidade dos acordos já atropelados por Israel e os Estados Unidos. Poderá ser adequada embora batida a analogia do combate à pandemia no corte de laços (uma enfermidade grave e neste caso crônica) com os Estados Unidos dos ultimatos aos palestinos e favores a Israel, e com Israel, o algoz do povo palestino, que se prepara para anexar o restante da sua pátria.

Por Moara Crivelente*

“A Organização para a Libertação da Palestina e o Estado da Palestina estão liberados, a partir de hoje, de todos os acordos e entendimentos com os governos estadunidense e israelense e de todas as obrigações baseadas nesses entendimentos e acordos,” disse o presidente Abbas, citado pela agência palestina Wafa (leia a tradução do discurso no fim do texto). Abbas convocara uma reunião de emergência para discutir a estratégia diante do plano declarado do governo israelense de anexação, que embora repudiável, não surpreende: Israel vem anexando a Palestina há muito. Entretanto, a situação toma novas dimensões.

Nas últimas semanas, diversos analistas examinaram as consequências da coalizão de governo recém-anunciada em Israel entre dois criminosos de guerra cuja única distinção mais relevante entre si é serem de extrema-direita ou de direita (ou “centro-direita”, segundo alguns). O acordo para a formação da coalizão entre o atual premiê Benjamin Netanyahu (cuja supremacia, após uma década de mandato consecutivo, só foi posta em xeque por acusações de corrupção) e o ex-comandante das Forças Armadas de Israel Benny Gantz, prenunciava maior tensionamento. Um dos principais motivos era a já anunciada intenção de anexar vastas porções do que restou da Palestina, chancelada pela proposta de “acordo do século” (o “ultimato do século”) despejada pelo presidente estadunidense Donald Trump. A proposta poderá ser apresentada ao Parlamento israelense a partir de 1º de julho.

Abordamos em três episódios da TV Cebrapaz, atividades virtuais e artigos o 72º aniversário da Nakba, a Catástrofe na Palestina, rememorada todo 15 de maio, representada pelo massacre e expulsão de centenas de milhares de palestinos e a destruição de quase 600 vilas no processo de estabelecimento do Estado de Israel, no fim do “Mandato Britânico”, em 1948. Discutimos então como a ocupação militar e colonização israelense da Palestina toma rumos irreversíveis enquanto os ditos mediadores internacionais ainda ousavam falar de negociações para solucionar o “conflito”. Mas na chamada questão palestina, a “diplomacia” é tomada pelo ultimato das potências.

Catástrofe contínua

É valente o combate que o povo palestino travou e trava através da resistência, primeiro armada (sistematicamente taxada de “terrorismo” por seus algozes e cúmplices) e também jurídica e diplomática. Apostando na paz, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) reconheceu o Estado de Israel e se comprometeu com o estabelecimento do Estado da Palestina ao seu lado. Já seria um muito menor que o desenhado na resolução 181 adotada em 1947 pela Assembleia Geral da ONU, que recomendava a partilha da Palestina entre judeus e árabes em linhas desproporcionais, num plano rejeitado pelo povo palestino desde a década de 1930 porque já o enxergava como colonização da sua terra pelo movimento sionista sob o Mandato Britânico. Em um dos episódios da TV Cebrapaz, incluímos um vídeo ilustrando essa articulação, com a propaganda do exército britânico reprimindo revoltas palestinas (que, note-se, já eram taxadas de terrorismo).

O compromisso dos palestinos com uma solução diplomática ficou plasmado no discurso de Yasser Arafat na ONU em 1974 (quando caminhou até o púlpito ovacionado), convidado pelo presidente da Assembleia Geral, o argelino Abdelaziz Bouteflika, um exemplo da conquista do espaço pelo movimento anticolonial. O compromisso seria reforçado na Declaração de Independência da Palestina em 1988 e na Declaração de Princípios de 1993, que inaugurava o chamado processo de paz de Oslo para garantir a transição da ocupação militar israelense para a consolidação do Estado da Palestina até o fim daquela década. Neste quesito, “o processo” fracassou.

“O Estado da Palestina proclama seu compromisso com os princípios e objetivos das Nações Unidas e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Proclama seu compromisso, ainda, com os princípios e políticas do Movimento Não Alinhado. Também anuncia ser um Estado amante da paz, aderindo aos princípios da coexistência pacífica. Se unirá a todos os estados e povos para assegurar uma paz permanente baseada na justiça e no respeito pelos direitos, para que o potencial da humanidade para o bem-estar seja garantido, um sincero concurso pela excelência seja mantido e em que a confiança no futuro elimine o temor daqueles que são justos e para quem a justiça é o único recurso.”

(Trecho da Declaração de Independência da Palestina, 1988).

No chamado processo de Oslo criou-se a Autoridade Nacional Palestina (ANP) como o Executivo para consolidar as instituições do Estado, monitorada de perto pelas potências europeias e instituições internacionais com seus programas econômicos e de “reforma do setor securitário”, assim como pelos Estados Unidos. Instituíram-se arranjos também supostamente temporários, como a fragmentação do território palestino em áreas A, B e C de controle pelas forças palestinas, controle compartilhado, ou controle israelense, respectivamente. A maior porção ficou sob controle israelense, com centenas de colônias com hoje cerca de 600 mil habitantes e que se expandem exponencialmente e com sua infraestrutura de abastecimento e acessos cortando as artérias do território palestino e capturando seus recursos.

É este estado de coisas que os palestinos têm colocado em xeque; já em 2018 o Conselho Central da OLP adotava resolução sobre a suspensão dos acordos. O que a “diplomacia coerciva” dos Estados Unidos, corroborada não só por negligência pelos demais “parceiros”, garantiu foi o adiamento da autodeterminação do povo palestino e o enraizamento da colonização israelense, implementada pelo que não é mais apenas uma ocupação militar, mas um regime de apartheid.

O efeito colateral é o descrédito generalizado sobre uma solução negociada, como há décadas já se via e ouvia entre palestinos e também israelenses, ainda que em grande parte responsabilizando os primeiros por não aceitar tão complacentes condições. Um dos chavões reiterados pela liderança israelense é que os palestinos nunca aceitam as propostas de “paz” e, quando aceitaram, faltava ainda mais uma cláusula incluída depois (a Palestina seguia ocupada, mas passou a ser preciso não só reconhecer o Estado de Israel como agora o Estado Judeu de Israel, embora cerca de 20% da população seja palestina).

Resistência à diplomacia coerciva

Ao anunciar que deverá deixar esta marcha fúnebre para investir na cura à enfermidade que é o monopólio da situação pelos EUA, aliado incondicional de Israel, o presidente Mahmoud Abbas expressa a revolta do seu povo, que há tempos morre nos postos de controle militar, nas imediações das “barreiras” ou em suas próprias vilas e casas, nas prisões e nos campos de refugiados onde são amontoados há sete décadas. Sete décadas. Mesmo assim, a ousada decisão ainda enfrenta uma barreira colossal. A Palestina, seu povo e suas autoridades, afinal, seguem sob ocupação.

Abbas já havia anunciado a suspensão dos arranjos de Oslo em fevereiro, quando da divulgação do plano de Trump, o que poderia forçar a transferência das responsabilidades sobre o território ocupado à potência ocupante (status que, aliás, Israel refuta, alegando tratar-se de uma disputa territorial, mas o status é reconhecido internacionalmente). Este objetivo ficou plasmado no discurso desta terça.

O Comitê Executivo da OLP também demandara o fim da coordenação securitária com Israel e a eventual denúncia dos acordos de Oslo. Há anos, instava os atores internacionais a tomar medidas contra as hostilidades do regime israelense e seus planos evidentes de “perpetuar a ocupação e controlar o futuro e o destino do povo palestino”, como se vê em uma declaração remetida à ONU. Afinal, já passaram duas décadas desde que a implementação dos acordos de Oslo deveria ter sido concluída e o que se vê hoje na Palestina é a inviabilidade de qualquer Estado soberano nessas condições.

A OLP lutou pelo reconhecimento do Estado da Palestina pela ONU, desde 2012, como estado observador não-membro, e hoje por mais de 130 países. O Estado aderiu a dezenas de agências e organizações internacionais para se fazer representar nos mais diversos fóruns em que poderia não só contestar a ocupação israelense como se inserir na chamada comunidade internacional como membro pleno, de direito. E seguirá fazendo isso, conforme anunciou o presidente Abbas, apesar da pressão dos EUA, exercida inclusive contra as próprias agências internacionais. 

As autoridades e entidades civis palestinas seguiram buscando vias para responsabilizar o regime israelense pelos crimes de guerra que perpetra não só através das ofensivas que com frequência devastam Gaza, mas também através das políticas e práticas da ocupação militar no cotidiano, pelo que aderiu ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Nesta frente a batalha ainda é árdua.  

Para alguns, parte da esperança está nas eleições de novembro nos EUA, quando se espera que Trump seja despejado da Casa Branca, substituído por Joe Biden, que se declara contrário, como um grande progressista (ironia) à anexação da Palestina. Há todo um comentário relevante sobre Biden, resguardado para outro texto, mas não é preciso dizer muito além de um nome: Barack Obama, aquele democrata cujo governo se gabava de ser o maior aliado de Israel. Está comprovado que o imperialismo estadunidense não tem outro papel além de cúmplice do algoz do povo palestino.

Nenhum momento será melhor que o agora para enfatizar que só através de um empenho acirrado dos anti-imperialistas e anticolonialistas, amigos da paz, em todo o mundo, será possível apoiar o povo palestino em sua luta por libertação, inclusive do jugo estadunidense e sua farsa “diplomática”. Os últimos eventos, mas também as últimas décadas, preconizam cada vez mais tensão na Palestina ocupada, cuja colonização, também está demonstrado, não passará sem resistência.

*Moara Crivelente é cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)

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