Conjuntura internacional

Mudança tectônica na Ásia Central

07/09/2021
Tropas de guarda no aeroporto de Cabul 23/08/2021 REUTERS/via Reuters TV

Por Luís Carapinha no “Avante!”

A humilhante derrota dos EUA e do imperialismo no Afeganistão não se afigura um ato isolado no panorama regional, fazendo redobrar o tinir das campainhas de alarme em Washington, Londres e demais capitais do mundo capitalista. A guerra mais longa dos EUA teve como propósito não o combate ao terrorismo, mas a desestabilização da Ásia Central para enfraquecer a Rússia e a China, fato já abertamente reconhecido no seio do establishment.

Agora, o fracasso da ocupação dos EUA e da Otan e o seu final caótico e degradante dão mais relevo à perspectiva de um “ovo paradigma estratégico regional”, em que sobressai justamente o papel desempenhado pela Organização de Cooperação de Xangai (OCX), de que o Afeganistão é membro observador. Em julho, uma reunião do Grupo de Contacto para o Afeganistão da OCX apelou à formação de um governo de unidade nacional no país.

Neste quadro, não são menos sonantes as notícias recentes de que a decisão da OCX de, finalmente, convidar o Irã para se tornar membro de pleno direito se encontra num estádio de formalização, o que significaria o reconhecimento implícito de que o país não é responsável pelo desrespeito do chamado Acordo Nuclear Iraniano, quebrado unilateralmente por Trump. Teerã solicitara em 2008 a adesão à organização composta pela China, Rússia e as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central (à exceção do Turquemenistão) e alargada com a inclusão da Índia e Paquistão em 2017. Não é por acaso que num encontro há dias com o primeiro-ministro de Israel, Biden ameaçou recorrer a “outras opções” [militares], depois de Gantz (ministro da Defesa israelense) ter defendido uma ação militar contra o Irã, enquanto são mantidas as sanções ilegais impostas a Teerã pela anterior Administração.

Apesar de todas as incertezas e perigos, a débâcle da retirada militar dos EUA do Afeganistão – em que, sublinhe-se, Washington permaneceu até ao fim fiel à sua missão de terrorismo de Estado e instrumentalização do terror –, representando mais um revés no turbilhão de dificuldades, desaires e impasses nos planos interno e externo, contrasta com o reforço do papel regional da OCX e a sua capacidade de construir consensos, controlando contradições e antagonismos, e afirmar os direitos de soberania. Sinal desta realidade é a realização, este mês, da Cimeira de Duchambé e de exercícios militares defensivos da OCX, um mês após a China e a Rússia terem efetuado manobras conjuntas, estabelecendo pela primeira vez um comando misto operacional e estratégico. Por outro lado, prossegue o grande projeto Um Cinturão e Uma Rota promovido por Pequim e o investimento em obras vitais de infraestrutura.

Nenhum país da Ásia Central acedeu à oferta do Pentágono de acolher as bases militares evacuadas do Afeganistão, mas nos EUA já soam os apelos histéricos a “reverter o curso” e relançar a guerra infinita contra o terrorismo. Na presente situação, há que estar atento aos riscos de sérias provocações noutros pontos do globo. O imperialismo tudo fará para tornar inviável o Estado afegão e projetar a violência e instrumentalização das forças mais obscurantistas. Não prescrevem os crimes de lesa-humanidade da sua responsabilidade durante mais de 40 anos de agressão. Os EUA assassinaram o sonho tornado real de emancipação do povo afegão. Mas não ganharam a guerra, saindo em vergonha.

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