Opinião

No Brasil, Netanyahu alimenta seu governo, o fanatismo à Bolsonaro e a colonização da Palestina

07/01/2019

Por Moara Crivelente (*)

A visita de Benjamin Netanyahu para a posse de Jair Bolsonaro serviu aos propósitos do premiê de Israel. Netanyahu busca legitimidade e apoio internacional e foi recebido com pompa num país estratégico como o Brasil. Investigações de corrupção, a instabilidade do seu governo ou a ocupação militar da Palestina e um regime segregador constitucionalizado parecem detalhes. Em conversa, a parlamentar Aida Touma-Sliman fala do cenário em Israel contextualizando o protagonista da aliança zelada por Bolsonaro.

Netanyahu representa a sorte de personagens que Bolsonaro não só chama de amigos como também venera. Está no altar ao lado de Trump, o que é coerente, admita-se; foi o primeiro premiê israelense a visitar o país e já convidou Bolsonaro a visitar Israel, o que deve acontecer em março. Grande contraste desde os episódios de tensão entre Brasil e Israel quando, em 2014, o governo Dilma convocou o embaixador brasileiro em Tel Aviv para consultas após protestar contra a ofensiva à Faixa de Gaza e em 2016, quando rejeitou a nomeação de um colono, Dani Dayan, como embaixador de Israel no Brasil.

Para entender o papel de Netanyahu não é sequer preciso traçar o histórico da sua performance mais remota, o que incluiria a oposição ferrenha que fez aos diálogos com os palestinos nos anos 1990. Ele promove a colonização desenfreada—foram construídas mais de 10 mil casas em colônias várias apenas em 2018— através da duradoura ocupação militar da Palestina e apoiou a consolidação em lei de um regime de apartheid. Em sintonia com a agenda imperialista dos EUA, recebendo não só apoio político incondicional como também um patrocínio militar vultuoso de quase USD 4 bilhões anuais —apoio que Israel recebe desde os anos 1970— Netanyahu é o atual garantidor de uma política externa amplamente ofensiva, sobretudo contra a Síria, o Irã e o Líbano. Mesmo assim, tem uma relação complicada até mesmo com setores da extrema-direita, onde seu partido Likud enquadra-se. Não é à toa que movimentações como a convocação de eleições antecipadas para abril de 2019 são vistas à luz daquela busca por legitimação.

A devoção de Bolsonaro a Netanyahu não sai de cena sequer nos discursos ufanistas de um patriotismo teatral, vazio e descomprometido com o Brasil. Não foi preciso nem vermos as ultrajantes imagens do presidente-capitão desonrado e servil bater continência tanto para a bandeira dos Estados Unidos quanto para o próprio Netanyahu para sabermos disso.

Em Israel, forças progressistas sabem que preço os brasileiros pagarão neste tenebroso mandato. Em 22 de dezembro, o Partido Comunista de Israel (PCI) já condenava a anunciada participação de Netanyahu na posse de Bolsonaro. O PCI manifestou preocupação pela situação no Brasil, após a eleição de um candidato de discurso neofascista “parceiro de Trump e Netanyahu no projeto de atropelar a democracia a favor do capital internacional”, e expressou solidariedade à luta pela liberdade do presidente Lula de seu encarceramento político e em defesa das conquistas democráticas e sociais no país.

Em entrevista realizada em novembro, às margens de uma conferência mundial contra bases militares dos EUA e da OTAN em Dublin, Aida Touma-Sliman, representante palestina no Parlamento de Israel pela Hadash —Frente Democrática pela Paz e a Igualdade, que inclui os comunistas e compõe a coligação Lista Conjunta, de quatro partidos de oposição— falou da conjuntura israelense na aprovação da lei que consolida o regime de apartheid, da colonização da Palestina e da defesa do direito nacional palestino a um estado independente. Neste quadro, a diplomacia brasileira passa a ter um papel bastante distante daquele que nos levou a reconhecer o Estado da Palestina em 2010, restando ao movimento solidário no país a vigilância e a defesa ferrenha da causa da paz justa e emancipadora.

Há tempos, Netanyahu tem atacado instituições internacionais que prezam, ainda que por vezes mais retórica que efetivamente, o direito do povo palestino ao estabelecimento do seu Estado e a proteção dos seus direitos humanos – principalmente a ONU, que também é alvo de Bolsonaro. Atenta sistematicamente contra o chamado consenso internacional para resolver a pendência de 70 anos na Palestina com políticas colonizadoras regadas ao despojo e desapropriação de terras palestinas e à repressão sistemática e frequentemente fatal dos palestinos em resistência.

Setenta anos é a idade de uma catástrofe, a Nakba, que é contínua, ainda que referenciada pelo período de expulsão e massacres como eventos fundadores da atual luta por libertação da colonização israelense, significando o exílio ou a opressão na terra ocupada e a impossibilidade da realização nacional de um estado independente. Foi então que se estabeleceu o Estado de Israel, em 1948, após a proposta de partilha do território promovida pela ONU.

Para celebrar o 70º aniversário de Israel, dois selos comemorativos foram emitidos pelos Correios do Brasil. O primeiro foi presenteado pela Comunidade Bet Shalom de Visão Judaico Messiânica, sediada em Manaus, ao embaixador israelense no Brasil Yossi Shelley, em agosto de 2018. Mais tarde, um novo selo foi emitido por encomenda da própria Bet Shalom, segundo conta o rabino Shaliach Roe Ícaro Moreno em seu programa Canal da Torá, em dezembro de 2018. O novo selo tem estampado o rosto de um Netanyahu triunfante; ao lado, o número 70 perpassado pela palavra “salvador” em hebraico e, em baixo, a congratulação, mazel tov. O diário Times of Israel presumiu que o adjetivo messiânico se refere a Netanyahu, o que é possível; o Haaretz relatou a homenagem criticamente e avaliou quão instrumental foi a visita e os encontros que o premiê realizou no Brasil, também noticiados por outros jornais.

Netanyahu garantiu, após encontro com Bolsonaro em 28 de dezembro, que a mudança da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém é questão de tempo. Também conseguiu um compromisso similar de Honduras na mesma ocasião. Isso significaria reconhecer a cidade —de preferência, para o governo israelense, unificada— como capital de Israel, como fizeram os EUA de Trump em 2018. Tal passo contraria parte da solução promovida globalmente de partilha de Jerusalém entre Israel e a Palestina, que teria sua capital na porção leste, ou o estabelecimento de um estatuto internacional.

A incorporação de toda a Jerusalém data de quase quatro décadas em âmbito jurídico: em 1980, à revelia do direito internacional, já que a anexação passou à história das conquistas militares e não é mais legitimada, foi aprovada a Lei Básica (de estatuto constitucional) “Jerusalém: Capital de Israel”. O mesmo princípio foi reafirmado na Lei Básica “Israel: Estado-Nação do Povo Judeu”, aprovada em julho de 2018, onde o direito à autodeterminação é constitucionalmente reservado ao povo judeu, ignorando-se os 20% de palestinos que vivem em Israel.

Aida Touma-Sliman afirma, como muitos analistas, que a lei oficializou práticas discriminatórias já vigentes, estabelecendo um regime de apartheid porque classifica de forma diferente os cidadãos: judeus, inclusive os que não vivem em Israel, têm estatuto superior. “Mais ninguém, inclusive os palestinos que são cidadãos de Israel, é mencionado na lei; ela ignora nossa existência, o fato de sermos cidadãos e os nossos direitos.” Nem mesmo a formulação que afirmaria que todos os cidadãos gozariam de igualdade foi aceita durante a discussão no Parlamento, conta Aida, o que garante aos palestinos “uma categoria de segunda classe”.

Também a palavra “democracia” desapareceu das propostas; por isso, “acreditamos que a lei conclui, finalmente, a discussão sobre a possibilidade de o Estado ser judaico e democrático” ao mesmo tempo. Já os palestinos residentes de Jerusalém e das colinas sírias de Golã são relegados a uma terceira classe, “porque sequer são considerados cidadãos, nem mesmo de segunda classe, mas sim ‘residentes’ do estado”. Assim, “a lei cria um sistema de jurisdição dual, um para judeus e outro para árabes, e isso é apartheid.”

Esta lei não se promove isoladamente, continua Aida. Está imbricada em uma política que inclui quase 30 outras leis aprovadas nos últimos três anos que têm caráter racial e colonial e aquelas implementadas apenas contra os palestinos. Por exemplo: a extensão das sentenças por atirar pedras, geralmente em protestos, para 15 anos de prisão, numa lei que tem linguagem genérica, mas que é aplicada apenas contra palestinos. Outro exemplo que também reflete o estado do regime foi o aumento do índice da cláusula de barreira para restringir o acesso ao Parlamento. Os partidos maioritariamente árabes reagiram compondo a Lista Conjunta como estratégia de sobrevivência, o que, considera Aida, provocou mais ações para limitar a representação política palestina, como a lei que permite a expulsão de representantes do Parlamento por exporem opiniões demasiado radicais relativas ao conflito e ao regime, em 2016, quando a Lista Conjunta denunciou a medida como manifestação do desejo dos seus promotores de um Parlamento sem árabes.

A representante também fala do artigo 7º da lei, onde o desenvolvimento das colônias é definido como valor de alto interesse nacional: “É preciso considerar que esta não é apenas uma lei do apartheid, mas também uma lei colonial. Estabelece o sistema colonial existente e nega o direito à autodeterminação dos palestinos, apresentando um álibi para anexar cada vez mais terras palestinas a Israel.” Eventualmente, continua, “liquida-se a possibilidade de uma solução de dois Estados”; é assim que se apresenta o “acordo do século” tão alardeado por Netanyahu e Trump.

Entretanto, Aida garante, não haverá rendição à ocupação, com o fim da defesa da solução de dois estados, como alguns resignados ou desesperançados têm ponderado diante da estratégia colonizadora de Israel: “Esta é a principal essência da luta, sobrepor-se ao que o ocupante quer”, defendendo os direitos nacionais dos palestinos. “Entendo que o equilíbrio de forças na região e no mundo não é favorável à solução de dois estados (…), mas então tampouco o será para a transformação de Israel num estado secular e binacional.” Seria o ideal, mas não é realista, acredita. Ademais, reconhecendo a existência de solidários à que defendem uma “solução de um estado”, Aida diz: “ninguém deve dizer aos palestinos pelo que lutarão. Devemos respeitar e não ser paternalistas com relação ao movimento palestino por libertação”.

(*) Jornalista mestre e doutoranda em Ciência Política. Analista internacional sobre Oriente Médio e Resolução de Conflitos. Diretora do Cebrapaz e colaboradora da Página Resistência

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