Opinião

O papel do imperialismo planetário dos EUA na virada à direita dos Bálcãs (pode-se aprender algo com isso?)

23/07/2018
O ex-presidente Iugoslavo foi alvo, em 2001, de extradição forçada / Foto de Laura Joseph - Quotesgram.com

Nas discussões que correm na internet em torno do maior ou menor grau de fascistização da Ucrânia, a finalista desta Copa do Mundo que se notabilizou não apenas pelo bom futebol, mas por manifestações de extrema-direita e antirrussas de alguns jogadores e comissão técnica, pouca atenção tem sido dada ao papel que jogou o imperialismo planetário dos EUA e seu braço armado na Europa, ou seja, a OTAN, na produção desse comportamento político, que não se limita à Croácia.

Por Marcos Aurélio da Silva*

Os mais bem informados sabem que a Ucrânia, desde 2014, tem um governo de extrema-direita,  em uma sociedade hoje já marcada por muitos pogroms contra comunistas. Um governo saído de um golpe de Estado contra Vitor Yanukovych, o presidente filo-russo que hesitava em assinar o acordo de associação com a União Européia. Um golpe branco, como agora também nós o conhecemos, já que Yanukovych foi afastado após o anúncio de um “terceiro turno eleitoral”, o que se fez “em violação à Constituição do país”, e após manifestações “alimentadas bastante ativamente pelos Estados Unidos”, segundo as palavras de quem não pode ser acusado de alienação quanto às tramas da geopolítica global (Oliver Stone. As Entrevistas de Putin. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017, p. 259).

Para tentar entender um pouco mais desta inclinação, que como vimos toma mesmo toda a região antes integrada ao bloco soviético, vale dar atenção a materiais que pouco circulam entre nós, subordinados que andamos às “formas de consciência” produzidas pela mídia ocidental, o que é especialmente verdadeiro se pensamos nos diferentes níveis do nosso ambiente escolar. Não apenas as discussões dominantes no meio universitário seguem esse padrão, já as aulas de geografia política que são recomendadas nos livros didáticos de geografia e história são a clara expressão de um meio intelectual que não se põe com independência diante deste tema.

Tenho diante de mim a última entrevista de Slobodan Milosevic. Ela foi realizada por Fulvio Grimaldi e se encontra publicada no opúsculo assinado por Roberto Giusti e Alexander Höbel, sob o título La Nato in Jugoslavia: dalla guerra al colpo di Stato. Napoli: La Città del Sole, junho 2001, uma coleção dirigida por Domenico Losurdo e intitulada Per la Critica dell’Ideologia Borghese.

Antes de seguir em frente, algumas informações sobre Milosevic, que podem facilmente ser obtidas por uma boa consulta na rede. Para quem não se lembra, Milosevic, acusado em 1999 pelo Tribunal Internacional de Haia por crimes contra a humanidade no Kosovo, teve em 2016 reconhecida sua inocência pelo mesmo Tribunal, que concluiu serem falsas as acusações contra ele. Milosevic na verdade tinha por objetivo preservar a unidade da Iugoslávia, e sustentava ser necessário combater os grupos étnicos que se lançavam à ignominiosa operação de extermínio de muçulmanos e croatas na Bósnia.

Slobodan Milosevic, antes de ser nomeado presidente da Iugoslávia, em 1997, já havia sido presidente da Sérvia em 1987 e presidente do Partido Socialista Sérvio, uma trajetória que se seguia à experiência de militância como alto funcionário do Partido Comunista Iugoslavo, entre os anos de 1969 e 1982. Portanto, um homem suspeito aos olhos do Ocidente e do Imperialismo norte-americano.

Tendo rejeitado o envio de tropas aliadas ao Kosovo em 1999 (o ano da acusação do Tribunal de Haia, recorde-se), conheceu da parte da OTAN vários ataques ao exército Iugoslavo e contra os centros de comunicação sérvios. E, em março de 2001, sofreu uma operação de assalto a sua residência, o que ocorreu no mesmo dia em que terminava o prazo dado pelos EUA à Iugoslávia para que fossem estabelecidas reformas democráticas em troca de ajuda econômica ao país, bem como para a detenção de Milosevic. Em 2006 morre em sua cela em circunstâncias obscuras. Aparentemente fora eliminado, já que um exame de sangue revelou a presença em seu organismo de rifamicina, um medicamento nunca prescrito por seus médicos e que anulava o efeito dos remédios que tomava contra pressão alta.

Vamos à entrevista. Como aparece no título deste artigo, nela destaco a presença dos interesses norte-americanos nas clivagens étnico-territoriais que têm marcado os Bálcãs desde o fim do bloco soviético.

Eis Milosevic:

“A Federação iugoslava, com a sua convivência pacífica, era um modelo de União Européia, até o momento em que não havia entrado em campo as tramas do imperialismo alemão e americano. Viviam em paz povos de cultura, história e confissão diversas. Viviam em harmonia há 80 anos. Na Iugoslávia não se perguntava a ninguém de que raça ou nacionalidade era. A ruptura ocorreu quando de fora foram instigados grupos de poder com a promessa de grandes privilégios pessoais e de elite. Quanto à população croata, por exemplo, como se pudesse convencê-la de uma ruptura, quando tantos croatas viviam na Bósnia, na Servia e no Kosovo? O mesmo valia para os sérvios, a quem ao contrário foi depois negada a autodeterminação, e para os muçulmanos. Não estava no interesse nacional de nenhuma destas comunidades chegar a uma divisão e contraposição.” (p. 54).

E mais adiante:

“A destruição do meu país é a demonstração de que não existe a globalização, mas só um novo colonialismo. Se se tratasse de verdadeira globalização, buscariam a integração, sob a base da paridade dos povos, culturas, religiões. Seria preservada a Iugoslávia, que havia posto em prática a melhor fórmula. Se as nações, os estados, os povos fossem tratados como sujeitos iguais, não fossem conquistados, estuprados, se o mundo não devesse pertencer a uma minoria rica, que deve tornar-se mais rica enquanto os pobres tornam-se mais pobres, se teria a justa globalização. Nunca se viu uma colônia se desenvolver e alcançar a felicidade. Se se perde a independência e a liberdade, todas as outras batalhas são perdidas. Os escravos não prosperam” (p. 59).

E agora, como que dando razão ao que Domenico Losurdo disse ser a falha da esquerda ocidental — social-democrática, e de tintas já bem desbotadas –, a saber, a cegueira diante das opressões imperialistas, Milosevic aponta o dedo para os representantes deste campo, que à época encontravam-se nos governos de seus respectivos países. Todos, através da OTAN, a serviço dos interesses norte-americanos nos ataques ao seu país:

“Mas a conduzir a guerra foram os governos de esquerda, social-democratas, europeus”. “A desinformação e manipulação penetraram também nas esquerdas, de modo que hoje na Europa temos apenas falsas esquerdas”. “Blair, Schrëder, Jospin, D’Alema são quiçá de esquerda?… Os EUA penetraram nas suas estruturas políticas e, portanto, midiáticas. Foram paradoxalmente as esquerdas que nos bombardearam.” (p. 59)

E por fim, demonstra que não só a Iugoslávia foi um alvo, mas todo o Leste europeu, repetindo um padrão que agora nos parece já um pouco familiar. “Ramsey Clark, ex-ministro estadunidense da justiça e líder dos direitos civis, é um grande combatente pela paz. Quando iniciou a guerra Iraque-Irã, a crise dos reféns, Clark perguntou a Kissinger o que esperava daquela guerra. A resposta foi ‘que se matem uns aos outros’. A historia se repete: a guerra entre eslavos e eslavos e mulçulmanos para que se enfraqueçam, se matem, esvaziem o campo. Basta olhar o Kosovo, a Chechênia, o Daguestão, a Macedônia. Agora os EUA se entendem ameaçados por Putin, pela Moldávia, pela Bielorrússia, pela Ucrânia. Consideram todos ameaças ao Ocidente só porque começaram a mover-se em direção à esquerda e a cuidar com mais responsabilidade dos próprios interesses” (p. 59).

Diríamos que tudo isso nada tem a ver com o Brasil? Nada tem a ver com o golpe em Dilma Rousseff e as condições em que nos encontramos hoje, a caminho de uma completa dilaceração social? Não deveríamos ter tanta certeza. E, ao lado das contradições sociais internas que levaram à crise dos governos do PT (uma decorrência da luta interna entre as classes e frações de classe), seria de bom alvitre lançar nos olhos ao país que se posiciona na geopolítica mundial como aquele que, como o disse Domenico Losurdo, se proclama a “nação eleita por Deus” para ser “o modelo para o mundo” (Revolução de Outubro e democracia no mundo. Trad. M. A. da Silva, in: 100 anos da Revolução Russa. Legados e Lições. F. M. Grabois e Anita Garibaldi, 2017).

No conto O professor de Letras, Anton Tchecov pintou um quadro bastante depreciativo de Hipolit Hipolitítch, o professor de história e geografia “de feições meio rústicas que não sugeriam inteligência”, e que sempre “se mantinha calado” ou “só falava aquilo que todos já sabiam”: — “O rio Volga deságua no mar Cáspio… Os cavalos comem aveia e feno…” (O Assassinato e outras histórias. São Paulo: Cosac & Naify, 2002). Seja na universidade ou nas escolas de ensino médio, seja na opinião pública de modo mais geral, já não estamos mais autorizados a pensar a história e geografia, e não só a do Leste europeu, como o velho Hipolit Hipolitítch.

* Marcos Aurélio da Silva. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina

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