Opinião

A política exterior e a posição do Brasil no mundo

28/12/2018

Diplomata escreve sobre as mudanças radicais na política exterior e a posição do Brasil no mundo iniciadas com Michel Temer e que devem se acentuar na gestão de Jair Bolsonaro

Por Samuel Pinheiro Guimarães (*)

“A geografia é a política das Nações”.
Napoleão (1769-1821)

“O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos Estados Unidos.”
Raul Fernandes, Ministro das Relações Exteriores
(26/08/1954 a 12/11/1955)

1. A política exterior e a posição do Brasil no mundo se transformaram radicalmente desde a posse de Michel Temer, resultado de golpe de Estado político/midiático/judicial em 2016.

2. A julgar pelas manifestações do presidente eleito, de familiares e de seus ministros indicados, essa mudança de política e de posição deverá se acentuar na gestão do presidente Jair Bolsonaro, a partir de 2019, devido à sua visão do mundo e da sociedade brasileira.

3. A justificativa para aquela mudança radical se baseava em críticas à política exterior do PT, em especial do Governo Lula:
a) seria ideológica e privilegiaria as relações com governos de “esquerda”, não democráticos;
b) negligenciaria as relações com os países ocidentais desenvolvidos;
c) envolveria o Brasil, com prejuízo para sua imagem, em temas nos quais não teria interesse direto nem poder suficiente para influir;
d) não daria atenção suficiente aos interesses comerciais e econômicos do Brasil;
e) contrariaria importantes interesses norte-americanos na América do Sul;
f) não criaria um ambiente receptivo aos capitais multinacionais.

4. A política exterior do Governo de Dilma Rousseff, acusada de exibir semelhantes características, foi afetada pela mudança no cenário internacional e pelo desenrolar da crise política interna, a partir das manifestações de 2013 e, em especial, após sua reeleição, e pela visão da presidente acerca das prioridades de seu governo. Algumas iniciativas, como a inclusão da Venezuela no Mercosul, a criação do Banco dos BRICS, o programa Ciência sem Fronteiras e o Mais Médicos despertaram reação e, na área militar, o programa de fortalecimento das indústrias de defesa foi de grande importância.

5. O confronto aqui feito é entre a política exterior definida pelo Presidente Lula, e executada pelo Chanceler Celso Amorim, com a assistência do Professor Marco Aurélio Garcia e do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e a política exterior do período Temer, a partir de 2016.

6. A política exterior de Temer, em grande medida, retoma a política do Marechal Castelo Branco, do Presidente Fernando Collor e do Presidente Fernando Henrique, com as circunstâncias de cada período, mas com a mesma orientação geral comum de alinhamento com a política norte-americana.

* * *

7. As características do Brasil, de natureza permanente, são:
a) extraordinárias disparidades internas;
b) notáveis vulnerabilidades externas de natureza política, econômica, tecnológica, militar e ideológica;
c) grande potencial de desenvolvimento;
d) localização na América do Sul, com notáveis disparidades em relação aos vizinhos; extensas fronteiras terrestres; longo litoral no Atlântico Sul, em frente a 23 Estados da África Ocidental;
e) localização na zona estratégica mais importante para os Estados Unidos da América, maior potência política, militar, econômica, tecnológica e ideológica atual, que exerce uma política imperial.

8. Assim, caso a definição e execução da política externa não se fundamente nessas características e, ao contrário, vier a se construir sobre ideias preconcebidas ou que ignoram tais características, ela dificilmente terá êxito.

9. As disparidades internas podem ser sintetizadas nos índices de concentração de riqueza e renda, como revela a distância entre os brasileiros que ganham mais de 320 mil reais por mês, em número de 6.200, e os 53 milhões de brasileiros que recebem o Bolsa Família. As demais disparidades são decorrentes e relacionadas em suas causas e efeitos. Essas disparidades nos diferenciam radicalmente dos países desenvolvidos e nos aproximam dos países subdesenvolvidos, na situação real e na busca de soluções.

10. A vulnerabilidade política decorre de o Brasil não ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e estar, todavia, obrigado a cumprir suas decisões; a militar, da ausência de poder dissuasório; a econômica, do desequilíbrio estrutural no balanço de contas correntes; a tecnológica, da baixa capacidade de gerar novas tecnologias; a ideológica, da forte penetração externa cultural e de informação.

11. O enorme potencial brasileiro de desenvolvimento decorre da extensão de terras e da fertilidade (corrigida) do solo e, quanto ao subsolo, da significativa gama de recursos minerais, inclusive o pré-sal; do gigantesco mercado potencial interno; da capacidade produtiva instalada e da capacidade de atração e geração de capital.

12. O número de Estados vizinhos de fronteira, na região e na África Ocidental; as disparidades de dimensão e de potencial em relação a eles; a origem e evolução histórica distinta; os ressentimentos, fruto de conflitos do passado entre os Estados na região, tornam a posição do Brasil muito delicada em suas relações bilaterais e regionais.

13. A localização geográfica do Brasil na principal zona estratégica para os Estados Unidos, suas dimensões e potencial e a política americana de impedir ou dificultar a emergência de potências regionais que possam rivalizar com sua influência tornam necessárias firmeza, prudência e perseverança na execução da política externa.

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14. Devido às características do Brasil os objetivos da política exterior devem ser:
a) manter as melhores relações com todos os Estados vizinhos da América do Sul;
b) criar e fortalecer gradualmente um sistema de segurança político/militar na América do Sul e no Atlântico Sul;
c) criar e fortalecer um sistema dissuasório de defesa nacional;
d) estabelecer laços e programas de cooperação política e econômica com grandes Estados, como os Estados Unidos, a China, a Rússia, a Índia, a França e a Alemanha;
e) contribuir, ativa e imparcialmente, para a solução de crises internacionais;
f) participar ativamente de conferências internacionais sobre temas universais, como meio- ambiente, pobreza, raça, gênero, etc.
g) cooperar com países subdesenvolvidos em projetos de desenvolvimento, sem impor “condicionalidades” políticas ou econômicas;
h) diversificar, quanto a produtos, destinos e origens, seu comércio internacional;
i) abrir novos territórios para a ação das empresas brasileiras;
j) promover a revisão dos sistemas de decisão dos organismos econômicos internacionais para obter condições de melhor participação do Brasil;
k) conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

15. Foi por não se orientar por estes objetivos e por buscar um alinhamento unilateral, sem reciprocidade, com a política exterior americana que a política exterior de Temer não obtém resultados positivos e a imagem e a posição do Brasil se encontram afetadas negativamente.

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16. No governo do presidente Lula, o Brasil seguiu à risca os princípios de não-intervenção e de respeito à autodeterminação, inscritos na Carta da ONU e na Constituição de 1988. Assim, foi possível manter, ao mesmo tempo, excelentes relações com a Colômbia e a Venezuela; com o Peru e o Equador; com Bolívia e Chile; com a Argentina e o Uruguai; apesar das divergências de posição e de crises entre esses países em diversos momentos.

17. No período de Michel Temer, o Brasil se juntou aos países da Aliança do Pacífico e aos países do Grupo de Lima contra a Venezuela, infringindo os princípios de autodeterminação e de não intervenção, gerando desconfianças e ressentimentos, no esforço de agradar aos Estados Unidos em sua campanha para derrubar o governo da Venezuela.

18. Sob a condução de Lula, o Brasil procurou criar um sistema de segurança político/militar na América do Sul, que foi a UNASUL, e seu Conselho de Defesa, foro exclusivo sul-americano para resolver divergências entre os Estados da região e promover a cooperação em geral, mas em especial na área de defesa, como o projeto do avião de transporte KC 390.

19. No governo de Temer, o Brasil veio a se retirar da UNASUL, e passou a privilegiar a OEA, organização onde a influência americana é extraordinária; promoveu a venda da Embraer à Boeing e assistiu ao esvaziamento do Centro de Estudos de Defesa, da UNASUL, em Quinto.

20. Com o presidente Lula, o Brasil procurou criar um sistema de dissuasão, com o programa de transferência de tecnologia e construção do submarino nuclear com a França e a aquisição e produção, no Brasil, de caças Gripen suecos. Os programas militares estratégicos tiveram aumento significativo de recursos orçamentários.

21. Na gestão de Michel Temer, foram reduzidos os recursos para os programas estratégicos militares (cibernética, espacial, nuclear) e houve a condenação, sem provas, do Almirante Othon Pinheiro da Silva, responsável pelo programa nuclear, a 43 anos de prisão.

22. No governo de Lula, o Brasil manteve excelentes relações com os Estados Unidos e com seus presidentes, se aproximou da China e da Rússia, colaborou ativamente para criar o BRICS, formou o IBAS com a Índia e África do Sul; aproximou-se da França, com o projeto do submarino nuclear e a ação conjunta na iniciativa Campanha contra a Fome; e com a Alemanha, o Japão e a Índia formou o G-4 para articular a reforma da Carta da ONU e permitir seu futuro ingresso no Conselho de Segurança, como membro permanente.

23. Com Michel Temer, o Brasil passou a ter uma política não apenas exterior, mas uma política geral de governo de atender a reivindicações dos Estados Unidos, como a mudança do regime do pré-sal e as licitações de áreas do pré-sal, a redução da Petrobrás a uma pequena empresa, não integrada, com o auxílio do Judiciário, da Operação Lava Jato; de acesso à base de Alcântara e de abertura de todos os setores da economia ao capital estrangeiro.

24. No governo do presidente Lula, o Brasil procurou, em articulação com a França e a Alemanha, impedir a invasão do Iraque em 2003; contribuir para a paz na Palestina, ao reconhecer o Estado palestino e ao manter boas relações com Israel e, com a Turquia, negociou com o Irã a aceitação das condições ocidentais relativas a seu programa nuclear.

25. Com Temer, o Brasil tornou uma posição tímida e distante em relação às crises da Síria e do Irã.

26. Com o presidente Lula, o Brasil participou ativamente das conferências mundiais organizadas pelas Nações Unidas e suas Agências, tais como a de diversidade cultural (Unesco), e do clima e promoveu importantes e inéditas conferências, como as reuniões de países árabes/América do Sul e África/América do Sul; contribuiu para a ação do G-20 financeiro e lançou a Iniciativa Mundial contra a Fome.

27. No governo de Michel Temer, o Brasil passou a participar de forma discreta de conferências mundiais, e de reuniões importantes inclusive as reuniões do G-20 financeiro, com um perfil diplomático baixo e sem apresentar propostas importantes.

28. Com Lula, o Brasil fortaleceu o Mercosul, articulou a expansão do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), a inclusão da Venezuela e da Bolívia no Mercosul e instalou vários projetos de cooperação na África, como as unidades da Embrapa em Gana e da Fiocruz, em Moçambique.

29. Temer não prestigiou o Mercosul, agiu para suspender a Venezuela do Mercosul, contribuiu para enfraquecer o bloco, não procurou fortalecer a cooperação com a Argentina, mesmo com o seu governo simpático ao Brasil, nem com a África, onde esteve apenas em Cabo Verde, para a Conferência dos Países de Língua Portuguesa, e na África do Sul, para a Cúpula do BRICS.

30. O governo do presidente Lula procurou a diversificação do comércio exterior brasileiro, promovendo as exportações de produtos industriais, em especial para a América Latina e para a África e o comércio do Brasil com os países desenvolvidos atingiu níveis mais elevados.

31. Na gestão Temer, não houve preocupação maior com a perda de participação percentual das manufaturas no total das exportações, com o acentuado processo de desindustrialização, resultado de uma política cambial de valorização do real e controle da inflação.

32. No Governo Lula, houve um esforço significativo de apoiar a internacionalização das grandes empresas de capital brasileiro, em competição com megaempresas multinacionais de engenharia de construção, não somente na África e América Latina, mas inclusive nos Estados Unidos e na Europa.

33. Com Temer, houve uma sujeição do Executivo ao arbítrio da Operação Lava Jato que não somente procurou, por meios inclusive ilegais, lutar contra a corrupção, mas em especial com o objetivo político de desmoralizar os partidos e, em especial, o Partido dos Trabalhadores e o Presidente Lula, o que ficou comprovado com a aceitação do juiz Sérgio Moro para ocupar o Ministério da Justiça no futuro governo Bolsonaro. A atitude de Temer permitiu a destruição e desorganização de grandes empresas brasileiras, o que não ocorreu em outros países, onde os empresários culpados são punidos e as empresas preservadas.

34. O Brasil, no período de 2003 a 2010, procurou articular com outros países a revisão dos mecanismos de decisão do FMI e do Banco Mundial, através da redistribuição de quotas e de poder de voto nessas organizações, as quais, aliás, o Brasil apoiou durante a crise financeira, inclusive com um empréstimo de US$ 10 bilhões ao Fundo Monetário.

35. A luta política pela revisão do sistema de votos não teve continuidade no Governo Temer, inclusive devido à oposição americana e seu desejo de alinhamento incondicional com os interesses americanos.

36. O objetivo brasileiro, de longa data, de obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi fortalecido no período Lula, com a criação do G-4 em que o Brasil, em estreita coordenação com o Japão, a Alemanha e a Índia, articulou politicamente junto aos demais membros da ONU a reforma dos artigos da Carta.

37. O presidente Michel Temer não atribuiu importância a este objetivo histórico e central da política exterior brasileira.

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38. As declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro, do deputado Eduardo Bolsonaro, do embaixador Ernesto Araújo, ministro, indicado, das Relações Exteriores, e de outros ministros-indicados, revelam certo desconhecimento e uma visão especial da complexidade da política internacional e das circunstâncias permanentes que devem orientar a política exterior brasileira.

39. A probabilidade de se agravar a situação de ineficácia da política exterior e de desprestígio do Brasil no mundo pode ser, assim, muito elevada.

40. A realidade, talvez, venha a se impor.

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(*) Samuel Pinheiro Guimarães é diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty (2003-2009) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010)

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