Palestina

Avanços do colonialismo na Palestina demandam reforço da denúncia e da resistência

12/12/2016
Bairro murado palestino em Jerusalém Oriental, Shuafat / Foto: Moara Crivelente

Uma categoria de análise abrangente e ação na “Questão Palestina”, não sem disputa, é o colonialismo. Sua pertinência é evidente: por exemplo, o governo de Israel discute legalizar “postos irregulares” em terras palestinas e elevá-los ao status de colonatos, abrindo precedentes no processo de anexação da Palestina. Neste quadro incluem-se eufemismos como a “transferência” – ou “limpeza étnica” – que perpetuam a nakba, a contínua “catástrofe” imposta ao povo palestino.

Por Moara Crivelente*

Há 56 anos neste mês, a Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu a histórica “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais” (Resolução 1514 da Assembleia Geral), mas casos como o da Palestina, do Saara Ocidental e de Porto Rico continuam pendentes. A luta anticolonial persiste.

A expansiva ocupação do território proposto pela ONU na Resolução 181 para o Estado da Palestina há quase sete décadas, no fim do Mandato Britânico, corre abertamente desde a Guerra de Junho de 1967 – com administração e presença militar, a captura de terras palestinas e a construção de colonatos israelenses. Entretanto, a política por trás das definições continua relevante sobretudo na construção da análise daquilo a que se resiste e das estruturas que sustentam esta realidade.

Grande parte dos movimentos palestinos e solidários, jornalistas e acadêmicos volta a enfatizar o tratamento da chamada “Questão Palestina” como uma de colonialismo de povoamento, cujo percurso histórico inclui o genocídio, a limpeza étnica, a ocupação militar e a guerra aberta no processo de colonização da Palestina. Na Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, em vigor a partir de 1951, genocídio pressupõe a “intenção de destruição” de um grupo – o que é em geral considerado difícil de se identificar – e limpeza étnica é mais especificamente a remoção forçada de uma população ou grupos de determinado território. Ambos os termos são contestados pelos defensores das políticas israelenses, esforço do qual historiadores e juristas participam de forma instrumental.

Posto de controle militar israelense em Hebron, na Palestina ocupada / Foto: Moara Crivelente

Posto de controle militar israelense em Hebron, na Palestina ocupada / Foto: Moara Crivelente

Outros ponderam o uso do conceito “colonialismo” devido à sua aplicação a casos muito diversos: aqueles em que a população indígena tornou-se minoritária e os antes colonizadores firmaram-se como a elite política e econômica; os que se sustentaram da escravidão e cuja expansão geográfica expulsou os indígenas, ou que os incorporaram ou exploraram sua força de trabalho; lembrando que indígenas e escravizados articularam diferentes formas de resistência, entre várias outras questões.

À ponderação, os primeiros respondem reconhecendo a necessidade de cautela e rigor na análise e na denúncia, ainda assim firme e contundente, de estruturas e das táticas que as sustentam, inclusive como produtos históricos, uma análise que deve servir à luta política e à resistência, à solidariedade entre povos que enfrentem ou não condições semelhantes de opressão.

Trabalhos cautelosos não faltam entre autores palestinos, israelenses e estrangeiros que analisam a “Questão Palestina” do ponto de vista do colonialismo e do imperialismo ainda hoje atravancando a História. Para Omar Salamanca, Mezna Qato, Kareem Rabie e Sobhi Samour, editores de uma importante coletânea de 2012 dedicada a esta discussão – Past is Present: Settler Colonialism in Palestine (“Passado é Presente: Colonialismo de Povoamento na Palestina”, sem tradução) – é necessária uma abordagem internacionalista na qual “a luta palestina contra o colonialismo sionista de povoamento só pode ser vencida se inserida nas e potencializada pelas lutas mais abrangentes – todas anti-imperialistas, antirracistas e que lutem por fazer outro mundo possível.”

Colonialismo, ocupação militar e violações

Hoje existem mais de 130 colonatos classificados apenas por Israel de “regulares” – e tratados como “comunidades” – com 570 mil habitantes, de acordo com a ONU, em um território palestino fragmentado em inúmeras porções cercadas, muradas ou desconectadas por postos de controle militar e diferentes categorias de permissão para movimentação ou estradas segregadas. Tudo isso dentro do zoneamento em frações de controle militar e civil completo ou partilhado entre Israel e a Autoridade Palestina (as zonas A, B ou C), proporcionado por um “processo de paz” lançado ainda em 1993, cujo legado é a ocupação entranhada.

No final de novembro, dias após o avanço da proposta de lei para regularizar entre 50 e 100 “postos” construídos em mais de 800 hectares de terras palestinas e habitados por colonos israelenses de forma irregular até mesmo nos padrões de Israel, o relator especial da ONU Michael Lynk disse que a “legalização retroativa” dos colonatos, cuja maior parte foi estabelecida em terras palestinas privadas, “será outro prego no caixão da solução de dois Estados”. Ou seja, enterra-se, como já fartamente denunciado, o estabelecimento efetivo do Estado da Palestina e a vigência do direito à autodeterminação do povo palestino, há 68 anos pendentes.

130201-beitel54314Quer sejam “postos irregulares” ou “colonatos”, segundo as Convenções de Genebra – instrumentos do Direito Internacional Humanitário que regula os conflitos armados – ambos são violações. A transferência de população nas circunstâncias de uma ocupação militar é, mais especificamente, uma violação da Quarta Convenção de Genebra de 1949, ratificada por Israel em 1951. Apesar do peso da denúncia, estas constatações não são novidade, sobretudo no período do atual governo de Benjamin Netanyahu, iniciado em 2009 na missão bem-sucedida de expandir os colonatos israelenses na Palestina.

Aliás, estes são argumentos e regulamentos que as autoridades israelenses não ignoram, como já vastamente notado. Os promotores da ocupação, da colonização da Palestina e da “limpeza étnica” de um povo que insiste em resistir alegam contestar as “interpretações” dos que recorrem ao direito internacional para denunciar a nakba, a catástrofe contínua.

À maquinaria trabalhando para transformar a linguagem jurídica a favor da ocupação nunca falta combustível. Especialistas há tempos classificam a prática de lawfare: conduzir a ofensiva, direta ou indireta, através – e não apesar – do direito, instrumentalizado como uma arma. O termo ficou conhecido no Brasil com a denúncia do “constitucionalismo” para legitimar o ilegítimo – como o golpe de Estado e a perseguição política na tendenciosa Lava Jato – mas foi cunhado em 2001 pelo general estadunidense Charles Dunlap, que rechaçava assim a oposição às guerras imperialistas e a denúncia dos crimes em que elas se sustentam como violações do direito internacional.

Para legitimar a ocupação e a colonização da Palestina, o princípio é semelhante, envolvendo acadêmicos, jornalistas, líderes políticos, organizações não-governamentais e até o Exército, com um departamento específico para isso, ajudando a promover uma anexação da Palestina apresentada no “juridiquês”. No esforço está incluída a justificação do encarceramento massivo dos palestinos, as constantes ofensivas militares, o bloqueio à Faixa de Gaza, a construção do muro de cerca de 800 quilômetros de extensão, as diferentes permissões ou proibições da movimentação, a destruição de casas e plantios pelo próprio Exército ou por colonos frequentemente protegidos pelos soldados, entre outras expressões do controle militar e colonial de Israel sobre a Palestina.

Benjamin Netanyahu faz campanha para a reeleição diante das obras na colônia Har Homa, em Jerusalém Oriental, palestina / Foto: Haaretz

Benjamin Netanyahu faz campanha para a reeleição diante das obras na colônia Har Homa, em Jerusalém Oriental, palestina / Foto: Haaretz

Legalizar “postos irregulares” é mais uma mensagem inequívoca do objetivo das forças mais extremistas em Israel de anexar a Palestina, mensagem já emitida, por exemplo, em 1980, quando uma lei estendeu a gestão israelense a Jerusalém Oriental, trocando o termo “anexação” da porção palestina por “unificação” da cidade. Membros do atual gabinete do governo de Benjamin Netanyahu em Israel também já disseram-no abertamente, como o ministro da Educação Naftali Bennett.

Esta “ambição abertamente afirmada deveria alarmar os interessados em ver o direito internacional respeitado e todos aqueles que desejam uma paz duradoura para todos os habitantes de Israel e da Palestina”, disse o alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al-Hussein, nesta quinta-feira (8). O alto-comissário reafirmou que os colonatos — “regulares” ou não na lei israelense — são o principal obstáculo à paz e a principal causa das violações dos direitos humanos na Cisjordânia e Jerusalém Oriental ocupadas.

Da parte estadunidense, enquanto o secretário de Estado John Kerry e o diplomata Martin Indyk – no Fórum Saban entre líderes dos dois países promovido pelo Instituto Brookings – repetiam a ladainha sobre a teimosia do governo israelense a respeito das colônias que os EUA retoricamente condenam como “contra-producentes”, bilhões de dólares enviados anualmente ao setor militar de Israel e um inestimável apoio político garantem que a nakba siga adiante.

O direito ou as discussões conceituais não podem substituir a mobilização política contra as estruturas opressivas, mas podem ser uma ferramenta de luta. Colonialismo de povoamento, limpeza étnica e segregação racista – sejam comparáveis ou não a casos como o da África do Sul, segundo as discussões conceituais – são categorias que devem sustentar as denúncias do que é perpetuado e perpetrado na Palestina ocupada e da situação a que está submetido, jamais sem resistência, o povo palestino.

*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional, diretora de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade entre os Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e assessora da Presidência do Conselho Mundial da Paz

 

 

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