Opinião

Torpedo bipartidário contra acordo do Afeganistão

07/07/2020

Por Manlio Dinucci

Centenas de milhares de vítimas civis, mais de 2.400 soldados americanos mortos (mais um número não especificado de feridos), aproximadamente um trilhão de dólares de gastos: este é um resumo dos 19 anos da guerra dos EUA no Afeganistão, ao que se acrescenta o custo aos aliados da Otan (incluindo a Itália) e outros que estavam do lado dos EUA na guerra. Resultados de fracasso para os EUA, inclusive sob o aspecto político-militar: a maior parte do território é hoje controlada pelo Taleban ou disputada entre este último e as forças do governo apoiadas pela Otan.

Nesse contexto, após longas negociações, em fevereiro passado, o governo Trump celebrou um acordo com o Taleban, em troca de uma série de garantias, para reduzir o número de soldados estadunidenses no Afeganistão de 8.600 para 4.500. Isso não significa o fim da intervenção militar dos EUA no Afeganistão, que continua com forças especiais, drones e bombardeiros. O acordo, no entanto, abriria caminho para uma escalada do conflito armado. Poucos meses após a assinatura, porém, ele foi quebrado: não pelos talebans afegãos, mas pelos democratas americanos. Eles aprovaram uma emenda à Lei de Autorização do Congresso, que aloca US $ 740,5 bilhões ao orçamento do Pentágono no ano fiscal de 2021.

A emenda, aprovada em 2 de julho pela grande maioria do Comitê de Serviços Armados com os votos dos democratas, afirma “limitar o uso de fundos para reduzir o número de forças armadas posicionadas no Afeganistão”. Proíbe o Pentágono de gastar os fundos em sua posse para qualquer atividade que reduza o número de soldados dos EUA no Afeganistão abaixo de 8.000: o acordo, que envolve a redução de tropas dos EUA no Afeganistão, é efetivamente bloqueado. Significativamente, a emenda foi introduzida não apenas pelo democrata Jason Crow, mas também pela republicana Liz Cheney, que a endossou em perfeito estilo bipartidário. Liz é filha de Dick Cheney, vice-presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009 na administração de George W. Bush, aquele que decidiu invadir e ocupar o Afeganistão (oficialmente para caçar Osama bin Laden).

A emenda condena explicitamente o acordo, argumentando que ele prejudica “os interesses de segurança nacional dos EUA”, “não representa uma solução diplomática realista” e “não fornece proteção às populações vulneráveis”. Para poder reduzir suas próprias tropas no Afeganistão, o Pentágono precisará certificar que isso “não comprometerá a missão antiterrorista dos Estados Unidos”. Não é por acaso que o New York Times publicou um artigo em 26 de junho que, com base nas informações fornecidas (sem nenhuma evidência) pelos agentes de inteligência dos EUA, acusa “uma unidade de inteligência militar russa de ter oferecido aos militantes do Taleban uma recompensa para matar soldados da Coalizão no Afeganistão, visando principalmente os americanos”. A notícia foi transmitida pela grande mídia americana, sem que nenhum caçador de notícias questionasse sua verdade.

Uma semana depois, no Congresso, foi aprovada a emenda que impedia a redução de tropas estadunidenses no Afeganistão. Isso confirma o real objetivo da intervenção militar dos EUA / Otan no Afeganistão: controle dessa área de importância estratégica. O Afeganistão está na encruzilhada entre o Oriente Médio, Ásia Central, Sul e Leste. Nesta área (no Golfo e no Cáspio) existem grandes reservas de petróleo. Existem a Rússia e a China, cuja força está crescendo e influenciando a fundação global. Como avisou o Pentágono em um relatório de 30 de setembro de 2001, uma semana antes da invasão estadunidense do Afeganistão, “existe a possibilidade de um rival com uma base formidável de recursos surgir na Ásia”.

Possibilidade que agora está se materializando. Os “interesses de segurança nacional dos EUA” determinam a permanência no Afeganistão, independentemente do custo.

(*) Jornalista e geógrafo. Publicado originalmente em Il Manifesto 

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