Opinião

Mauro Gemma: Dar eficácia à mobilização contra a Otan

16/03/2017

É possível constatar com facilidade como não só todos os argumentos que têm a ver com as questões militares e da segurança de nosso país são cientificamente descartados no aparato midiático dominante, mas também como continuam a ser sistematicamente relegados ao segundo plano, mesmo nas mobilizações (escassas, na verdade) dos setores políticos e dos movimentos sociais que mais deveriam assumir responsabilidades.

Por Mauro Gemma (*) em Marx XXI

Esses argumentos são virtualmente desclassificados de toda a agenda da esquerda no parlamento, inclusive aquela que se define “à esquerda do PD”, com todas as suas máscaras.

Não restou praticamente nenhum traço e lembrança das grandes manifestações que no passado caracterizaram o nosso país ao ponto de, em certo momento, a Itália parecer representar a ponta mais avançada de um movimento com alcance mundial, como aconteceu, por exemplo, com a extraordinária mobilização de milhões de pessoas por ocasião do desencadeamento da guerra de agressão contra o Iraque em 2003.

E se consideramos que, neste momento, está em curso no coração da Europa uma guerra como a desencadeada pelos nazistas que estão no governo na Ucrânia contra as populações do Donbass, promovida e apoiada pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan, parece surpreendente não só a substancial ausência de mobilização, agora delegada a pequenos grupos de voluntários internacionalistas que se movem na indiferença geral, mas também a falta de informações precisas sobre uma das páginas mais vergonhosas escritas por todo o Ocidente na história do pós-segunda guerra.

Atualmente, para reconstruir as condições que  permitam realizar uma proposta que, de qualquer maneira, inverta a atual tendência à desmobilização do movimento contra a guerra, é certamente indispensável esclarecer alguns elementos de análise, sem os quais não é possível o relançamento de um movimento pela paz e anti-imperialista, digno deste nome e capaz de especificar os objetivos da sua iniciativa, sem confusões inoportunas.

São dois os elementos fundamentais sobre os quais se deve focar a atenção e em torno dos quais buscar construir momentos de mobilização de certa eficácia.

Em primeiro lugar, é preciso ter clareza sobre um ponto sobre o qual, ao menos entre os poucos que se mobilizam conosco, está manifestando-se uma confusão que pode obscurecer a responsabilidade daqueles que são os principais atores da estratégia de guerra em curso no planeta, prejudicando a eficaz construção de mobilizações que se contraponham a essa estratégia.

Trata-se de um ponto essencial com a finalidade de construir plataformas que realmente vão à raiz da questão Otan: o reconhecimento de que os principais perigos para a paz mundial provêm antes de tudo dos grupos mais extremistas dos Estados Unidos da América, que representaram durante o governo Obama e continuam representando o núcleo hegemônico da Aliança Atlântica. Isto exprime a tendência mais agressiva e defensora do confronto militar que parecem prevalecer ainda hoje.

São sobretudo estes setores do establishment imperialista estadunidense que ditaram e continuam a ditar a agenda da Otan e da sua política de intervenção, agressão e guerra no tabuleiro de xadrez planetário.

É surpreendente que em algumas análises formuladas em ambientes da esquerda chamada radical ou antagonista de nosso país este elemento fundamental seja descartado, levando, como ocorreu no curso de algumas recentes tentativas de mobilização, a não citar os Estados Unidos entre os atores principais da política da Otan; a quase ignorar o fato de que precisamente por iniciativa dos grupos mais extremistas do imperialismo estadunidense, representados pelo conúbio entre falcões do partido democrata que tinham em Hillary Clinton a sua candidata às eleições presidenciais – os neoconservadores defensores do confronto com a Rússia e a China, como o senador republicano McCain, um dos protagonistas do golpe de Estado na Ucrânia – e os ambientes do Pentágono e dos serviços como o NSA (Agência Nacional de Segurança) e a CIA, que se intrometeu e continua a intrometer-se perigosamente, mantendo uma paz precária entre as potências nucleares -, está atuando freneticamente para criar as condições mais favoráveis até mesmo para o desencadeamento de uma guerra global de dimensões imprevisíveis e devastadoras, inclusive de caráter nuclear.

É esta linha que, pelo menos até o momento e sob o impulso dos setores anteriormente citados, parece estar sendo plenamente confirmada também pela nova administração de Donald Trump, em claro contraste com certas declarações feitas durante a campanha eleitoral que tinham gerado algumas expectativas de pelo menos pôr um freio às pulsões mais agressivas em relação ao parceiro nuclear russo. Propósitos que foram imediatamente frustrados pela reação furiosa belicistas que mantêm a hegemonia tanto no Partido Democrata como no Republicano que, sendo fortes também pelo apoio de todo o aparato midiático dominante do Ocidente, souberam distorcer a seu favor até mesmo a mais que legítima e justificada indignação de amplos setores da sociedade estadunidense (e europeia) contra as repugnantes pulsões reacionárias,  xenófobas e racistas do novo inquilino da Casa Branca.

Parece que continua, e aceleradamente, o processo de expansão da Otan para o leste. Tropas e armamentos letais da Otan são instalados para permanecer em alguns países da Europa Oriental, alguns dos quais vivem doravante uma situação de verdadeira ocupação estrangeira. A guerra no Donbass foi reavivada pelo exército da junta nacional-fascista de Kíev, em aberta violação dos acordos de Kíev. E a Rússia não parece mais nutrir otimismo com relação à abordagem dos EUA/Otan a essa questão, depois da nova injunção de Trump sobre “restituir” a Crimeia aos nazistas no governo da Ucrânia e a substancial reconfirmação das sanções por parte de sua administração.

Tudo o que foi dito, certamente, não absolve os aliados da Otan dos Estados Unidos, a começar pela União Europeia, cuja política de segurança – que não deve ser subestimada, diferentemente do que às vezes se tem a sensação de ocorrer – desenvolve-se em absoluta subalternidade a respeito das escolhas de uma aliança cujo comando supremo é exercido pelos Estados Unidos, mas define com precisão aquilo que, ao menos da parte dos comunistas e das forças anti-imperialistas mais consequentes, deveria ser considerado o “inimigo principal” de todos aqueles que se batem pela paz e contra a militarização das relações internacionais.

Outro ponto importante em foco consiste no papel que deve ser atribuído ao alinhamento de Estados e blocos de Estados que constituem o alvo principal dos planos da Otan: o das potências emergentes que se agrupam no Brics, uma aliança que as manobras do imperialismo estão tentando reconfigurar, desestabilizando os componentes menos determinados a confrontar-se com a ofensiva dos Estados Unidos e dos seus aliados, como está acontecendo com o Brasil e a Índia. E mais particularmente, deve ser analisado e evidenciado o papel da Rússia e da China, que constituem o elemento propulsor desse alinhamento.

Não deveriam subsistir dúvidas sobre o fato de que nessa fase histórica a Rússia e a China, duas grandes potências que estão consolidando relações de aliança também no plano da segurança (independentemente da opinião que cada um de nós formule sobre a natureza dos seus sistemas políticos e sociais), representam o elemento principal de contrapeso em face da política de expansão agressiva do imperialismo.

A Rússia e a China caracterizam-se por uma visão comum das relações internacionais, que faz parecer algo extravagante as acusações de agressividade e de imperialismo que lhes são lançadas.

Convém notar, e é uma grave omissão não fazê-lo, que as duas potências euro-asiáticas compartilham o respeito rigoroso às normas do direito internacional, os princípios que regulam as relações entre as nações contemplados na Carta das Nações Unidas. Ambas cultivam constantemente a esperança, em documentos oficiais e declarações dos seus líderes, na criação das condições para um mundo livre de centros hegemônicos da chamada “nova ordem mundial”.

Esta é, substancialmente, a razão que explica a fúria obsessiva, que chega ao ponto da caricatura e da demonização, por parte dos propagandistas do modelo através do que se pretende impor, desde o momento do fim da URSS, o domínio da principal potência imperialista, numa  lógica puramente “unipolar”. Veleidade que a chegada de Vladimir Putin à presidência da Rússia prejudicou seriamente, com a subsequente transformação da Rússia no inimigo principal do establishment imperialista, ao ponto de ser considerada, mesmo em documentos oficiais, “mais perigosa” do que o próprio Estado Islâmico.

Ignorar este aspecto fundamental das questões atinentes ao papel desempenhado pela China e a  Rússia, significa não somente não compreender o quanto a existência desse contrapeso à propagação da agressividade do aparato de guerra ocidental, às suas ambições de domínio planetário, possa favorecer o desenvolvimento da resistência anti-imperialista dos povos e países e o crescimento em conjunto do próprio movimento pela paz em países como o nosso, mas significa também fazer uma grave distorção da realidade das atuais relações internacionais, atribuindo a responsabilidade da sua dramática deterioração, em igual medida, a todos os atores principais do cenário global, confundindo frequentemente os agredidos com os agressores.

Pace

É um desprazer constatá-lo, mas é isto que de maneira regular e culposa ocorre no pouco que resta do movimento pacifista na Itália, que tem por referência a esquerda parlamentar, mas também em setores da esquerda extraparlamentar, toda vez que, em face do crescimento das tensões internacionais, a resposta dada parece ser sempre em essência uma atitude como a de Pilatos, um chamamento à responsabilidade a todos os atores em ação e a atribuição das ameaças de guerra a um genérico conflito entre as grandes potências.

Então, é bem-vindo que se estendam iniciativas como esta de Torino, no esforço de esclarecer sobre os aspectos essenciais da questão Otan, para envolver o maior número de entidades em torno de uma plataforma eficaz e livre de ambiguidades, que ponha no centro a batalha pela saída da Itália da Aliança Atlântica e pela sua libertação da servidão militar e nuclear, através do fechamento de todas as bases estrangeiras em nosso território.

Somente desse modo, e buscando, sem exclusão, a interlocução com todas as forças no parlamento e nos países que compartilham completamente ou em parte esses objetivos, poderão ser criadas as condições para o relançamento de um movimento pela paz e anti-imperialista digno das grandes tradições da luta em nosso país.

Intervenção no evento “Fora da Itália as bases militares dos EUA e da Otan”, realizado em Torino, em 4 de março de 2017. Mauro Gemma é diretor do sítio Marx XXI. Traduzido por José Reinaldo Carvalho para Resistência.

 

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