Opinião

A Guerra da Venezuela

25/02/2019

Por Lincoln Secco para Resistência

A mudança de regime na América Latina, depois da onda rosa de governos reformistas, deu-se por transições eleitorais (Chile, Argentina e El Salvador), golpes híbridos (Honduras, Paraguai e Brasil) e até por simples traição (Equador). Pode ser que continue mediante a combinação de motins internos e ameaças externas na Nicarágua e Venezuela. Não por acaso, os dois últimos são países em que as Forças Armadas deram, até agora, sinais de fidelidade ao governo instituído.

Na Nicarágua elas foram substituídas em 1979 por um novo exército dirigido por comandantes rebeldes a exemplo do que tinha acontecido em Cuba vinte anos antes. O novo Exército Sandinista formou-se numa guerra civil contra grupos paramilitares apoiados pelos Estados Unidos.

Em 1990 a Frente Sandinista foi derrotada nas eleições, mas manteve o controle do Exército. Cinco anos depois o General Humberto Ortega deixou o comando militar e até 2006 a Direita promoveu uma política de afastamento da instituição de suas origens revolucionárias. Neste ano Daniel Ortega foi eleito novamente presidente e, desde então, reforçou o poder do executivo sobre as forças Armadas.

No caso venezuelano, a chamada Revolução Bolivariana se deu pelo voto, mas foi dirigida por um coronel do Exército. Apesar de dissensões internas ao longo do tempo, Chavez promoveu a ascensão de oficiais a alguns postos de comando na economia. Ao mesmo tempo incluiu em sua doutrina militar um princípio que vários Estados socialistas adotaram, embora sua origem esteja na própria ação de Simon Bolívar e na resistência russa e espanhola contra Napoleão Bonaparte: o armamento do povo.

Guerra Popular

A Milícia Bolivariana não é o exército de um partido, mas simplesmente a materialização de um princípio de Clausewitz: a guerra é de todo o povo. Ninguém levou tal princípio mais longe do que o Vietnã sob a liderança de Ho e Giap.

Por trás disso está a ideia de que nenhum país periférico pode resistir apenas militarmente a um inimigo imperialista. Como os comandantes das Forças Armadas periféricas têm total consciência disso, eles costumam se submeter aos Estados Unidos.

Simultaneamente, excluem suas alas nacionalistas e funcionam como tropa colonial de controle do “inimigo interno” e de tutela do poder civil.

A sua doutrina foi a do alinhamento automático ao líder do hemisfério ocidental durante a guerra fria. Com o fim desta, tais exércitos entraram em crise de legitimidade e também se viram expostos ao opróbrio por sua participação em violações de direitos humanos.

Tradição

Cuba, Nicarágua e Venezuela são países latino-americanos em que o Exército ainda não permitiu os golpes híbridos de nova geração. Não se sabe se uma ação bélica vai eclodir; se o comando militar permanecerá com o presidente constitucional ou com o pretendente a usurpador; muito menos se países vizinhos como Colômbia e o Brasil participariam de uma guerra.

O que se sabe é que a tradição militar latino-americana não é a de envolvimento em grandes batalhas reais. Exércitos sem povo se especializam em guerra interna, seja a civil, seja o conflito de baixa intensidade contra grupos oprimidos de sua própria população.

O Brasil viveu sua última guerra civil em 1932 e as guerrilhas locais nunca provocaram uma situação que pudesse assim ser definida. Isso de fato aconteceu na Colômbia e América Central.

O único exército que esteve envolvido nos dois maiores conflitos da América Latina independente foi o paraguaio. Na “Guerra Grande” de 1864 – 1870 enfrentou Brasil, Uruguai e Argentina. A última de grandes proporções foi a do Chaco (1932-1935), em que a Bolívia foi derrotada pelo Paraguai. Os demais conflitos do século XX estiveram longe das proporções daquela guerra.

Tomando em conta o histórico, seria de esperar que generais brasileiros jamais tomassem a iniciativa de levar suas tropas ao recontro num campo de batalha. Treinadas para a contra- insurgência e experimentadas na “pacificação” de favelas no Haiti e no Rio de Janeiro, elas sequer contam com legitimidade popular (pessoas dispostas a morrer em campo de batalha) e nem com um objetivo percebido como justo pela sua própria população.

Os Estados Unidos não devem, por outro lado, intervir sem o uso de exércitos locais. A última vez em que invadiram um país latino-americano para derrotar uma Revolução foi em Granada em 1983.

Para os brasileiros uma certeza: uma coisa é “alistar-se” pela internet, outra é viajar à fronteira. Em todo caso, Estados e exércitos cometem suicídio político. É raro, mas foi assim que o fascismo foi derrubado na Europa.

(*) Professor Livre Docente de História Contemporânea na Universidade de São Paulo

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