Opinião

“Agressão humanitária” – novo conceito para velhas práticas

02/03/2019

Por Alexandre Weffort (*), em O Lado Oculto

As notícias sobre política internacional neste final de fevereiro centraram-se na situação da Venezuela, onde se desenrolou mais um episódio de agressão externa por parte dos EUA de Donald Trump e seus aliados imediatos, a Colômbia de Duque e o Brasil de Bolsonaro. Os media hegemônicos redobraram esforços de propaganda, seguindo um guião pré-anunciado de imposição de “ajuda humanitária”, usada como argumento de afirmação política da direita venezuelanas e da sua estratégia de conquista do poder lançada publicamente há um mês com a auto-proclamação de Guaidó.

 

  1. Recuperamos um texto de 1933, do matemático português Bento de Jesus Caraça, da sua célebre conferência «A cultura integral do indivíduo – problema central no nosso tempo» quando refere: “Época singular! em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização (…) e, paralelamente, à desorganização total da vida econômica e à destruição deliberada precisamente daquilo que a maioria carece. Época em que é possível um tal campear do cinismo que um ministro holandês propõe, numa conferência internacional, a interdição do bombardeamento inimigo em tempo de guerra, para que alguns dias depois um avião holandês lance, sobre um barco holandês, em tempo de paz, uma bomba que semeia a morte a bordo…” (1).

A contradição assinalada por B. J. Caraça, denunciando o traço ideológico do fascismo no dealbar da Segunda Guerra Mundial, revive nos tempos de hoje, na estratégia traçada para a justificação de uma intervenção militar na Venezuela.

2. Navegando num mar de informações fragmentadas pela retórica política, envolta em muito lixo comunicacional (as chamadas “fake news”), a dificuldade em se extrair dos eventos noticiosos uma linha isenta é notória. A superficialidade das matérias publicadas pelos media  hegemônicos (rebaixando cada vez mais o exercício do jornalismo a um mero serviço de propaganda) convida, pela falta de distanciamento mínimo, a uma adesão imediata aos argumentos emocionais.

As imagens escolhidas procuram ilustrar os acontecimentos. Algumas permitem uma leitura comparada com eventos recentes em outros quadrantes. A imagem do autocarro incendiado numa localidade fronteiriça da Venezuela com o Brasil traz à memória imagens também recentes de eventos violentos   produzidos, todavia, em contextos diversos.

No mês de janeiro, assistimos a uma crise de violência no Brasil, no Estado do Ceará, produzida por facções criminosas e coordenada do interior das prisões, com vista a condicionar a política prisional do governo estadual. Os ataques a autocarros foram uma das formas visíveis da violência na oposição dos grupos criminosos ao estado de direito.

A narrativa possibilitada pela imagem (2) coloca a par a consequência da ação violenta para as populações – o fogo e o fumo denso – e a banalização da própria violência, no modo impotente e aparentemente passivo com que assistem ao evento. A imagem ao lado foi feita no Brasil (Ceará). Difere das imagens difundidas agora em relação à Venezuela, onde a ação violenta desponta em mãos populares. No entanto, o protagonismo que as imagens retratam suscita outros questionamentos.

Nesta imagem (3) são visíveis dois ingredientes essenciais: ao fundo, a força militar venezuelana, na linha de fronteira e, na mão esquerda do indivíduo em primeiro plano, uma lata que se supõe ser de combustível (o mesmo que alimentou os muitos engenhos explosivos lançados contra as forças militares venezuelanas).

Enquanto na imagem do Ceará a figura passiva cabe aos populares, na imagem da ponte entre Colômbia e Venezuela a componente passiva é dada pelas forças militares venezuelanas. A imagem corrobora a tese de o incêndio do camião ter sido perpetrado do lado colombiano da fronteira.

Recuperando o texto inicial, de B. J. Caraça, fica o paralelo. Por discordar do sentido em que caminha a Venezuela, os EUA promovem o bloqueio econômico, impondo sanções e bloqueando recursos econômicos, nomeadamente, os que resultam da exploração do petróleo. O bloqueio contribui para uma crise econômica que, depois, vai ser utilizada como razão para impôr uma certa forma de “ajuda humanitária”. No caldo emocional desse processo, os próprios ativistas que exigem a entrada da “ajuda humanitária” incendeiam os camiões que a transportava. O cinismo da geo-política é singular.

3. O início deste episódio último de agressão sobre a Venezuela foi também “singular”, com o auto-proclamado Gaidó (prontamente reconhecido por Trump nos EUA e, depois, por Bolsonaro no Brasil) a tramar por uma intervenção estrangeira no seu próprio país.

A estratégia de Guaidó-Trump, seguida de forma linear, irá contrariar regras mais elementares da diplomacia. Numa forma que desconhece o elementar da psicologia castrense, Donald Trump chega a ameaçar explicitamente os militares venezuelanos como forma de os “cativar” para a oposição.

Desde a sua eleição em 2016, Donald Trump polarizou ideologicamente a expressão do fascismo na fase atual global da História: afirmar a agressão como gesto, a imposição como caminho, a ingerência como método. Em pleno séc. 21, passadas 7 décadas sobre a derrota do nazismo e do fascismo na Segunda Guerra Mundial, vemos ressurgir comportamento análogo, não de forma que se possa dizer surpreendente. Todavia, tendo Trump como ícone e Bolsonaro como avalista, surpreendente será haver quem, minimamente informado, ainda se deixe levar pela retórica da «agressão humanitária».

4. O episódio de imposição da “ajuda humanitária” recorreu ao uso abusivo de emblemas tradicionalmente respeitados na sua neutralidade, como os da Cruz Vermelha, motivando o pedido dessa organização humanitária internacional no sentido de não se produzir esse uso abusivo (4). O envolvimento da Cruz Vermelha colombiana na distribuição da “ajuda humanitária” à Venezuela havia sido já negado pelo movimento e comunicado de 4 de fevereiro em que se afirma: «O movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho em Colômbia reafirma que, com o fim de garantir o cumprimento da sua missão humanitária e de acordo com os Princípios Fundamentais de Imparcialidade, Neutralidade e Independência, não pode participar nas iniciativas de entrega de assistência programadas para a Venezuela a partir da Colombia, sem que haja um acordo prévio com o Movimento” (5), tendo Christoph Harnisch, responsável pelo CRCV em Colômbia, afirmado haver «uma manipulação do termo ‘humanitário’» (6) na questão venezuelana.

A manipulação política foi também notada no Brasil por Rodrigo Maia, Presidente da Câmara do Congresso afirmou «temer a atuação dos EUA: “Eu fui contra a participação do Brasil porque a gente sabia que, por trás dessa ajuda humanitária, havia um encaminhamento diferente por parte dos Estados Unidos. E está feito aí, com mortes, uma confusão na fronteira brasileira em Roraima» (7). A exiguidade da carga de uma das 2 camionetes, enviadas com pompa pelo governo federal brasileiro foi notória. Mas, não deixou de ser aproveitada ad nauseam pelos media brasileiros.

No rescaldo, a Revista Veja dá ênfase ao insucesso da estratégia norte-americana, citando o jornalista William Waack, que resumiu: «“Estamos numa fria (…) Ainda não sabemos o que fazer, mas tudo indica que uma intervenção militar, ou a permissão para que outro país use nosso território para isso, está fora de questão» (8).

O envolvimento do governo brasileiro na operação de “agressão humanitária” à Venezuela acarretou já consequências a nível interno, com a ala militar a impor ao Itamaraty algum pragmatismo (nas palavras do general da reserva Eduardo Schneider): «O militar enxerga as coisas de maneira pragmática, sob a ótica dos interesses do Brasil. Com as voltas que o mundo dá, o Brasil poderia ser alvo de intervenção no futuro. Temos que tomar cuidado para não sermos peões dentro de uma estratégia de uma superpotência» (9).

Referências:

 

Resistência, com O Lado Oculto

(*) https: Alexandre Weffort é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura

Compartilhe: