Economia

A privatização da Eletrobrás e a miséria neocolonial brasileira

19/06/2022

Por Bernardo Muratt, no Holofote

A venda da maior empresa de energia da América Latina é o mais recente episódio que denota a situação neocolonial do Brasil. Não buscarei me apegar aos aspectos absurdos com relação ao imenso prejuízo dessa privatização seja na soberania nacional, na implantação de políticas públicas, no desenvolvimento econômico, na segurança nuclear ou mesmo na sua ilegalidade. Esses aspectos não importam aos perpetradores da destruição nacional. Entendamos primeiro o atual contexto.

Kwane Nkrumah – líder político ganês e principal expoente de uma África independente – já deixava claro, nos anos 1960, que o neocolonialismo era o regime de dominação que se edificou sobre o colonialismo.

A diferença residia no método da dominação enquanto que as antigas colônias obtinham independência formal. Receitas de ajustes econômicos estruturais vindos de Washington, empréstimos do FMI, todos parte integrante de um governo invisível sob os auspícios de Wall Street se tornaram regra nesse novo modelo de então.

Ou seja, é a manutenção da lógica colonial sob o disfarce do auxílio externo e da adesão aos planos econômicos vindos do ocidente.

Podemos ver nos principais veículos de mídia, que a privatização da Eletrobrás é tratada como algo positivo, melhor para as contas, melhor para o mercado, consequentemente melhor para o país e para a sociedade.

Sob a pecha de melhora estamos destruindo nossa própria autonomia. A verdade é que tudo vale para atender uma lógica de mercado importada que serve aos interesses dos países mais poderosos do globo e, também, a nossa burguesia.

Os principais monopólios nacionais vêm desde os anos 1970 e 1980 se internacionalizando e financeirizando. A afirmação do capital estrangeiro no Brasil se estabeleceu de fato nos anos 1950 com o governo JK e cristalizou seu poder político de forma derradeira com o golpe de 1964 e o regime militar.

Temos que considerar estes fatos para compreendermos o ensurdecedor silêncio da maioria das classes sociais brasileiras. Compreender que não há uma burguesia que preze por uma ideia de desenvolvimento autônomo e soberania nacional é o primeiro passo. O que falar das nossas táticas de resistência?

O calendário de lutas da CNE (Coletivo Nacional dos Eletricitários), com o intuito de barrar a privatização, continha quatro tuitaços e plenárias online que não surtiram nenhum efeito objetivo, visto que basta esperarmos para que o leilão seja finalizado.

As principais forças progressistas presentes – CNE, CUT e PT – parecem crer em uma espécie de burguesia nobre e com bons princípios alinhados à soberania e ao desenvolvimento nacional. Um certo arquétipo burguês ideal que nunca existiu no Brasil salvo as vezes que foi puxado pelo Estado – como na Era Vargas – em contextos nos quais a força do capital estrangeiro era diminuta ou limitada.

Como em 1964, não tardou para que a suposta burguesia nacional lançasse suas investidas contra o país e contra a classe trabalhadora.

Ao que parece a preocupação da maior parte do campo progressista é encabeçar uma disputa moral e de constrangimento dos setores burgueses e conservadores com a expectativa de que tal constrangimento trave suas ações e motivações.

Isto, na verdade é uma visão liberal da política que ignora os fatores materiais e ganhos reais da burguesia em cada uma de suas ações de destruição no pouco que resta de ativos nacionais. Em meio disso, vemos que as principais ações dos setores progressistas organizados estão concentradas nas instituições nacionais – STF, TCU os mesmos responsáveis pelo golpe de 2016 –, e nas redes sociais.

Sobre as redes sociais em si, elas são parte do problema. O economista Samir Amin habilmente caracterizou cinco monopólios de dominação que garantem seu domínio político e econômico do centro capitalista (Estados Unidos, Europa e Japão) sobre outras nações do globo, são eles: o monopólio tecnológico; o controle mundial dos mercados financeiros; o acesso monopolístico aos recursos terrestres; controle da mídia e comunicação e controle sobre armas de destruição em massa.

Podemos dizer com tranquilidade que as redes sociais fazem parte dos monopólios de mídia e comunicações atuais, seja pelo seu imenso valor de mercado, seja pela mercantilização do engajamento de seus usuários.

Com o que nos deparamos? Com o fato de o campo progressista nacional fazer de principal ferramenta de luta, diante de uma disputa política grave, um monopólio privado internacional de comunicação para demover a ação de outros setores monopolísticos nacionais e internacionais – o mesmo Twitter que censurou perfis do governo iraniano e venezuelano.

Seria producente usar uma ferramenta do imperialismo, comandada por setores burgueses internacionais, para combater politicamente a nossa própria burguesia alinhada com os mesmos setores internacionais?

Vem agora uma outra questão: uma eventual vitória eleitoral de Lula seria capaz de reverter esse quadro?

Lula lamentou no Twitter a privatização da estatal e citou o programa Luz Para Todos, lamentou também o aumento do custo da energia proveniente da privatização mediante um cenário de aumento da fome no país.

Disse também que, em caso de vitória, devolveria a soberania ao povo brasileiro (o que não é o mesmo que declarar a reversão da privatização). Por outro lado, o candidato à vice-presidência, Geraldo Alckmin, manteve-se em silêncio com relação ao assunto.

Se nos recordarmos, veremos que mesmo quando teve maioria, o PT não reverteu as privatizações que ocorreram nos anos 1990. Agora, em um cenário político muito mais adverso com um candidato a vice que sempre foi neoliberal, é possível inferir que uma possível reversão seja ainda mais remota.

O setor judiciário, em 2016, já deu seu recado avalizando o golpe e criminalizando uma série de políticas públicas feitas pelo governo petista. A criminalização de desembolsos do Bndes e mesmo das medidas de combate à fome com auxílio da FAO são exemplos disso.

À medida em que a direita avança e o neoliberalismo toma conta, o horizonte político fica mais parco e os objetivos cada vez mais miseráveis. Por isso, um vice neoliberal é aceitável, por isso uma esquerda sem programa e sem estratégia clara – que se debruça apenas na habilidade política de Lula – e que acomoda as esperanças dos mais radicais aos mais conciliadores.

Quero deixar claro, ainda nos parece que Lula é a única alternativa eleitoral frente a Bolsonaro. Mas não podemos esquecer que o espaço de manobra de um governo eleito é muito pequeno, principalmente sem mobilização popular e com adesão à lógica neoliberal.

O quadro exige mais do que uma mera mudança de postura, é necessário que se cortem as ligações materiais e históricas que o país tem desde sua formação com os Estados do centro capitalista. Não necessitamos de isolamento, mas de emancipação.

Não basta ter uma economia autocentrada, mas sim mudar a colocação do país no cenário internacional de acordo com demandas próprias. No entanto, essas medidas são improváveis de acontecer em uma vitória eleitoral, ainda mais com parca mobilização popular.

Portanto, o cenário e as perspectivas do Brasil são mais sombrios do que aparentam. Reverter, ou mesmo frear os processos de privatização e perda de nossa limitada soberania que vêm ocorrendo desde os anos 1990 consiste em enfrentar uma lógica de dominação histórica de força material estupenda que transcende fronteiras e mesmo ideologias.

Reconheçamos os nossos reais inimigos, a luta não é pela metade ,é total. O nosso inimigo nos ataca com todos os seus instrumentos, não preza pela verdade para fazê-lo.

O constrangimento não irá demove-lo de seus objetivos e ações. Não se trata de mera disputa de interesses, é uma luta. É a luta de classes.

A burguesia está ciente disso, a esquerda, por vezes, parece crer que todos podem se reunir e chegar ao ponto em comum. Não há ponto em comum em um embate entre exploradores e explorados, ou se ganha ou se perde. Quem está ganhando?

(*) Bernardo Muratt é formado em Relações Internacionais pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), mestre em Ciência Política pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC (Universidade Federal do ABC).

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